Liz 25/09/2019
Fantástico livro - Que venha Homo tempus 2
Vós, porém, éreis mais íntimo que o meu próprio íntimo e mais sublime que o ápice do meu ser! brada Santo Agostinho em suas Confissões ao compreender como Deus era mais íntimo dele do que ele mesmo era. Passados tantos séculos, seguidos de tantos eufóricos e nietzscheanos assassinatos de Deus, quem ousaria imputar com ardor agostiniano esse papel a Deus? Mais fácil é explicar Santo Agostinho em sala de aula com um exemplo palpável e jovial: o algoritmo, este ser que adivinha o que comprei e o que vou comprar, o que quis, quero e vou querer, se tornou, hoje, mais íntimo de mim do que eu mesmo.
Do algoritmo aos direitos humanos, novos deuses sempre surgem para autores perspicazes exercerem suas críticas. Utilizando da imaginação do desastre de Henry James e contemplando uma vasta gama de possiblidades distópicas, o brasileiro F.E. Jacob estreia no gênero de ficção científica com Homo Tempus, uma aventura cinematográfica, ágil em ritmo e leve em conteúdo, sem por isso deixar de alfinetar com a devida classe uma imensa quantidade de hábitos desumanizadores cotidianamente vistos.
A pena de Jacob propõe um prazer a gregos e troianos: quem busca ação dinâmica e set pieces criativas não se decepcionará, tanto quanto quem busca uma maior densidade reflexiva intercalada em meio às descrições objetivas. Destinado ao público jovem-adulto, a obra não poderia deixar de ter como protagonista alguém do mesmo tipo: Wallace Vidal, da geração Z, é o condutor de uma jornada por diferentes eras que abrange dos neandertais às sociedades futuras para lá de eugênicas – e nem tão longes assim do presente 2019...
Vidal, funcionário da biblioteca de Estrasburgo, é um rapaz que não compreendia a admiração pelo passado ao qual seu entorno exortava. Tantos livros e tanta sabedoria nunca chamaram a atenção desse jovem ensimesmado, indiferente, quase narcísico. O flerte com a falta de empatia – aquela empatia tão rica a Adam Smith e David Hume – é descrito objetivamente por Jacob em uma de suas muitas tiradas práticas: a música mais ouvida por Vidal é a melancólica e autocentrada Everybody’s Changing, da britânica Keane, que traz lá um bom indício do porvir da história.
Com a mesma lepidez, o autor dá início à aventura: Vidal é transportado ao futuro – 2095 – ao voltar para casa de bicicleta. Cativeiros, fugas, erros fatais e neandertais – sim, no futuro – formam uma atmosfera convidativa, desafiadora, onde pouco é explicado e muito é feito.
Nas idas e voltas fluidamente narradas por Jacob, o desenvolvimento de Vidal e de tantos coadjuvantes se dá, prioritariamente, pelas ações. Definitivamente – e meio às tontas – o protagonista amadurece com as piores experiências possíveis. Wallace come o pão que o diabo amassou – e faz os outros comerem – antes de sequer começar a fazer as perguntas certas.
E quais elas seriam?
Jacob indica com prudência algumas diretrizes de sua história com epígrafes bem pontuadas. Theodore Dalrymple logo alerta sobre a desconexão dos jovens com o passado, ainda no prefácio. G.K. Chesterton orienta, na primeira parte, sobre a linha tênue que separa civilização e barbárie. Entre conservadores do passado – T.S. Eliot – e do presente – Sir Roger Scruton – Jacob busca se unir a uma tradição de cacife e estofo, a começar pela elegância e simplicidade da linguagem que tais autores sempre tiveram em dissonância às macarrônicas teses acadêmicas desconstrucionistas.
Simplificando e objetivando essa tradição do pensamento, o escritor brasileiro distribuí na personalidade de seus personagens esse viés conservador. O que pode parecer tedioso ao leitor leigo, que iguala o conservadorismo ao reacionarismo mais chinfrim, é, na realidade, um ás na manga do autor: a atitude conservadora faz um contraste empolgante e provocador com uma realidade que preza, acima de tudo, pelo Bem, pela Transparência e pelos seus filhotes totalitários. Não à toa John Lydon, vocalista clássico do Sex Pistols, andou defendendo Trump e o Brexit por aí...o conservadorismo é o novo punk quando o politicamente correto progressista se torna o establishment.
É aqui que reside o grande trunfo de Homo Tempus.
Em descrições ácidas e pra lá de criativas, Jacob faz uso da imaginação para tocar no totalitarismo que uma banalidade do bem pode trazer. Em nome dos sentimentos dos cidadãos mais direitos foram sendo criados e, com isso, maior burocracia para garanti-los teve de ser efetivada. Em nome do Bem, da igualdade de direitos e dos sentimentos altruístas de tantos cidadãos que “só” clamavam por mais justiça social, um aparelho controlador, eugênico e totalitário foi criado às escuras, ignorando-se a outra face da moeda: qualquer direito novo implica em um novo dever.
A infantilização da sociedade, de mãos dadas com um avanço tecnológico avassalador, transformou a preguiça em direito a ser garantido pelo Estado – e tal preguiça logo viria a se confirmar como covardia e irresponsabilidade total em face à existência mesma. Elencando rapidamente os aspectos orwellianos da obra, temos o trânsito controlado pelo sistema, leis pró-veganismo (os hamburguers nem de carne são), leis pró-aborto, aplicativos sociais de procriação, uso de drogas legitimado para recondicionamento social, faculdades com função social obrigatória...e mais uma dezena que omitirei para não tirar a graça da descoberta. Como é dito em determinada parte da obra, é difícil combater a sedutora ideia de que outra pessoa é responsável pela sua felicidade.
A jornada de Wallace é feita de primeiras vezes. Uma certa nostalgia o atinge de surpresa, junto com uma vivacidade em face a tantos mundos mortos. Ora na paralisação burocrática e tecnocrática de um futuro sufocante, ora no silêncio e na fragilidade de um passado menos conectado, Vidal sente-se vivo, exatamente por encontrar o sentido do dever,e da responsabilidade naquilo que Victor Frankl chamará de vontade de sentido. Nas palavras do psiquiatra:
(...) temos – e não somente nós, os psiquiatras – a oportunidade de observar, repetidas vezes, que a necessidade e a questão de um sentido de vida irrompem justamente quando as coisas beiram o desespero. É o que podem testemunhar, entre nossos pacientes, os moribundos, bem como os sobreviventes dos campos de concentração e os prisioneiros de guerra!
O que Homo Tempus propõe é uma reflexão sobre a natureza humana – e em tempos onde “natureza humana” é vista como ficção e nojo por ideólogos de gênero e afins, é preciso coragem e habilidade para manejar tal questão. Felizmente, Jacob herda de Edmund Burke esse anti-progressismo prudente, propondo em seu escopo uma fantasia esperançosa que serve muito bem ao ensino prático e palpável do conservadorismo.
Tal ensino só é possível graças ao caráter propositivo, além de denunciativo, que Jacob concilia. A degradação cultural, os aconselhamentos estatais para criminosos, a crença completamente cega na tecnologia e no desarmamento da população em nome do Progresso estão lá, firmes e fortes sendo delineados. Em contraponto, contudo, o autor faz seu protagonista vivenciar na pele uma fé em pequena escala, nos small platoons a serem formados na pré-história onde Vidal acaba por cair.
Da caça aos rituais, da liturgia à vulnerabilidade da existência, Vidal aprende e ensina o fundamento do conservadorismo político e existencial que se preze: o amor ao próximo que está próximo, não à humanidade abstrata que Rousseau, Marx e tantos pensadores pseudo libertadores gritaram em suas pueris obras. É imaginando o completo caos – uma imaginação só possível a partir da percepção real de sua possibilidade prática – que Vidal percebe a prudência, o ceticismo e pequeno ato como valores imprescindíveis para que a vida se sustente. Deixando de lado o individualismo exacerbado, o protagonista elege a tradição e a responsabilidade como antídotos ao ressentimento e ao acaso com quem conviveu e sofreu tanto.
Claramente, é o autor, aqui, que vai em busca de seu leitor, fala sua linguagem e o estimula, com engenhosidade e belíssimas referências, a descobrir um mundo real de combate intelectual. Não é comum se ver uma aventura fantasiosa tão preocupada em temperar seu conteúdo com temas tão caros. Seu convite inicial é cirúrgico:
Quando você terminar de ler esse livro terá sido apresentado a três espíritos... Não, você não será visitado por três fantasmas, e sim conhecido o espírito de três épocas diferentes. Todas elas fictícias, porém também com elementos realistas, cabendo a você leitor, decidir o que é realidade em potencial e o que é puramente simbólico em cada uma. Contudo, não se iluda, a discussão é sempre a mesma: o que é universalmente humano e o que não é; principalmente o que está na segunda categoria, mas nos cega, nos impedindo de dar a devida importância ao que está na primeira.
F.E. Jacob nos oferece nesta estreia uma aventura, sem dúvida, mas uma lição de caráter formativo que sabe falar a linguagem da ação cinematográfica. Um leitor mais jovem pode viver a jornada com Vidal e ganhar uma bagagem preciosa. Um leitor mais velho pode se deliciar ao ver o jogo criativo de um autor moralmente responsável e corajoso em sua crítica. Em ambos os casos, trata-se de um convite raro e irrecusável. Que venha Homo Tempus 2!
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