Krishnamurti 07/03/2019
Um florescimento poético
Fernando Pessoa escreveu: “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. / Sentir tudo de todas as maneiras. / Sentir tudo excessivamente”. E como conceber Portugal sem seus eternos viajantes que se fazem presentes em tantos e tão variados pontos do globo a espalhar justamente o seu sentir tão peculiar e característico? Impossível. A Editora Urutau acaba de publicar uma coletânea de poemas muito interessante da senhora calí boreaz. O título da obra é “Outono azul a sul”. Sobre a jovem autora é interessante saber que nasceu no outono, em Portugal. De origem parte do Ribatejo, parte da Beira Baixa, estudou Direito em Lisboa em meio às noites de fado, depois aventurou-se a leste, viveu um tempo em Bucareste, onde estudou Língua e Literatura Romena, e também Tradução Literária e acabou por atravessar o Atlântico rumo ao sul, para viver no Rio de Janeiro, onde hoje se entrega também ao estudo e ao ofício do Teatro. Muito bem.
Na abertura da obra deparamo-nos com seu “Mote”. Poema “norte atlântico sul” que em verdade funciona como ideia básica, anteposta ao início do projeto poético da autora. Ali um dos motivos centrais da obra. “vim ao mundo em novembro, a norte. sempre me soube outono, mas esse outono que vem do norte cai de repente azul a sul, se descobre, em espanto, primavera também, e nesse vai e vem ainda estou juntando a folha e a (possível) flor.”
Aí temos geografia e estações / Espaço e tempo. O ser nascido a norte – Portugal – “sempre se soube outono”, que é a estação a suceder o verão e antecede o inverno. Aquele meio termo caracterizado pela queda da temperatura, e pelo amarelar e queda das folhas das árvores, que indica a passagem de estações. Mas eis que, descobre-se, de repente, azul a sul – Brasil, em plena época em que ocorre o florescimento de várias espécies de plantas. Primavera. Portanto, é período em que a natureza expõe-se em toda sua beleza, presenteando-nos com flores coloridas e perfumadas. A função deste florescimento, como se sabe, é o início da época de reprodução de muitas espécies de árvores e plantas. Assim a poeta em seu percurso de vida. Os trópicos sempre de vida estuante, e calí está assim, jovem, a florir poesia, a desabrochar vivências, a florescer sensações novas e insuspeitadas, a germinar novos sentido na vida que escolheu, e a ofertar-nos as flores de sua poética. O peito lusitano de novo, mais uma vez e sempre, volve ao Brasil. História de amor antiga esta...
No prólogo lemos um único parágrafo em prosa poética: “caiu uma flor no meu colo. caiu. quem assistisse diria que se espatifou, se machucou, eu sei”... “vou fazer essa folha virar azul, sem pintar de dentro pra fora, vem que no caminho te conto”...
E então o leitor encontra os “poemas caindo”, cada um deles (em número de 28) a contar de tantas e tantas vivências e sentimentos. Em “o som cinza”, um metapoema, lemos: ... “porque nele / eu dizia o indizível / aquilo que nem o poema permite / mas que talvez eu gostasse / que marcasse / de um jeito clandestino / um pedacinho do mundo // talvez os seus olhos / que eu sei que leriam / e eu jurando que não. // tem um tracinho aqui na tela / marcando ainda o compasso / o batimento cardíaco / do vácuo ansioso / não sabe que o poema já acabou”..., e ao final lemos: “o que seria de mim / sem a taquicardia sul-americana”.
Mas quem pensar que a poeta simplesmente substituiu mecanicamente hemisférios, continentes ou países, engana-se. Ela já não pertence a este ou aquele lugar: “não aterrisso em brasileiro, não aterro em português. vou-voo nos pólens da língua-poesia, que me solta. aqui estou. / e não me vês. A poeta segue no convívio de saudades, ou constatando que “entre observar o mundo e viver o mundo / há um frágil quase etéreo espaço, / assim mais ou menos quanto cabe na ausência de um abraço”. Ela ouve Cartola no youtube, em pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro e sonha que a Terra demorará mais um segundo em certa noite para dar uma volta completa sobre si mesma. Um segundo, apenas um segundo a mais, o tempo suficiente para que os “genomas humanos” possam nascer noutra ordem.
Surpreende o leitor ao escrever um Post scriptum tão carinhoso ao cabo de um poema (que chega a nos causar inveja do ser amado): “este domingo / passa lá no posto 5 / para eu te ver passar / vou estar lá na areia / a 20 passos da linha do atlântico / com os pés firmes / no magma azul / pulmões expandidos para a avalanche / quântica de oxigênio / de binóculos / ou de telescópio / só para te ver passar / no equilíbrio ótico / de te encontrar entre milhões / de meteoros secundários / e depois, o mundo / o calendário o mar os luzeiros / talvez se entendam / vou estar lá na areia / para te ver passar”.
Ainda nessa primeira parte do livro encontramos o belíssimo poema que é “sublimação”. Veja-se o profundo sentido que a poeta empresta ao verbo. Com efeito, as mudanças de ambiência favoreceram o crescimento pessoal da autora, a quebra de paradigmas, o questionamento em prol de uma resolução existencial. Ela escreve com o anseio da vida pois assume o risco que devemos desenhar com o peito aberto. Dar um passo em direção ao desconhecido é um risco, é verdade, mas para quem realmente vive, e quer trilhar a senda literária não há escolha senão lançar-se em descoberta. Aprecie-se se não constitui este poema uma verdadeira floração de maturidade.
“eu sou a intérprete das canções perdidas / a capa dos romances amachucados / o trilho interrompido do trem desesperado / sublimado em perfume de uma tragédia antiga / eu sou o ser que ama sem ser amado / o ser último e primeiro da Terra / de mim nascem todos os papéis penetrados por poemas / todas as serenatas e todas as guerras e todos os lemas / todos os exageros e todos os segredos / todos os medos e todos os nervos / tudo o que chora e que demora ou é de repente / todos os erros e acertos são meus / e amo meu amor ausente com o mesmo desapego de um deus / (eu sou o dia em que eu não mais direi eu sou)”.
Mas não para aí seu germinar poético. Temos no volume outros capítulos intitulados: “Intervalo a norte”, “O relento de dentro”, “Epílogo” e “Cenas da próxima estação”, a atestar que houve um projeto muito bem pensado e urdido na confecção dessa obra. Finalmente, um belo Posfácio escrito pelo escritor e diplomata João Almino. Cali boreaz, tem recebido apreciações críticas ao seu trabalho, bastante favoráveis: A escritora Paula Fábrio, escreve que a obra é uma verdadeira “geografia do tempo, em seu instante forte e delicado”. Ana Teresa Pereira delimita “uma onda que nos arrasta desde a primeira linha até lugares impossíveis de prever.” Francisco Azevedo pergunta-se: “Seguimos viagem. No rumo ou à deriva, que importa se são seus versos a nos soprar as velas?" E finalmente o poeta português Daniel Maia-Pinto Rodrigues faz talvez a mais justa observação sobre essa obra: “O espaço geográfico é tenso; uma peculiar tensão enamorada do vago. A identidade treme, então, na justa medida que ganha força. A mim parece-me que a autora leva essa força para a sua poesia, esse refúgio sereno do vento, onde as recordações e o oblívio (esquecimento) ceiam à mesma mesa.” Aguardamos com ansiedade novas produções da autora que em livro de estreia, demonstra vocação, habilidade e disposição para versejar sobre as tantas e tantas estações da vida. Nos leitores, ainda colheremos além de flores, bons frutos. Por certo.
Livro: “Outono azul a sul”, Poesias de cali boreaz, com ilustrações de Edgar Duvivier, e António Martins-Ferreira. Editora Urutau, Bragança Paulista - SP, 2018, 128p.
ISBN 978-85-7105-048-8
Link para compra e pronto envio do livro:
http://editoraurutau.com.br/titulo/outono-azul-a-sul
Em tempo: A autora também produziu alguns vídeos-poemas lindos disponíveis em:
http://www.caliboreaz.com/p/videopoemas.html?fbclid=IwAR1pwEQI_2Y-yhf-enAcRXF4jyAAKDwTShPtBe9qa8Noh3HrkUZk2dc1XRE