Marc 29/08/2015
Jimmy Corrigan – o menino mais esperto do mundo de Chris Ware é um dos quadrinhos mais premiados e respeitados dos últimos anos. Venceu tanto o prêmio Harvey e o Eisner, considerado o Oscar dos quadrinhos. Isso sem contar o Guardian First Award, a primeira HQ a vencer esse importante prêmio literário inglês. Mas não é pela quantidade de prêmios que se deve admirar essa HQ. Ela realmente é merecedora de todos os elogios, mas sua maior qualidade é a capacidade de emocionar com uma história simples, muitas vezes deprimente, mas que exala uma ternura delicada pela maneira que retrata os sentimentos de seus personagens.
Jimmy é um personagem pouco carismático, desgastado e sem atrativo algum. Mas isso não por algum defeito em sua criação. Chris Ware é um dos quadrinistas mais talentosos de todos os tempos e sabe como conduzir uma história. Vamos acompanhando esse personagem um pouco a contragosto, mas maravilhados com as ilustrações e as cores da HQ. Aos poucos, no entanto, a história começa a nos dominar e fica difícil deixar a leitura.
A história é banal, se formos resumir. Um homem adulto, frustrado por não conseguir se relacionar espontaneamente com pessoa alguma — e pior ainda com mulheres. Boa parte disso se deve ao domínio exagerado de sua mãe, que mesmo depois do filho se tornar adulto continua como parte ativa de seu cotidiano. E, como se não bastasse, a vemos usar chantagem emocional o tempo todo com Jimmy, infligindo um sentimento de culpa que o corrói. Mas ele é incapaz de fugir dessa cadeia, não há libertação possível em seu horizonte. Esse quadro pode mudar quando ele recebe uma carta de seu pai, que havia abandonado a família muitos anos atrás e é um verdadeiro desconhecido para Jimmy. Toda a ação decorre desse encontro. Para complementar com informações úteis a trama, também vemos pequenos trechos da história do avô de Jimmy, ainda jovem no fim século XIX, uma pequena genealogia da tristeza, se posso dizer desse modo.
Jimmy é mesmo muito triste, parece uma pessoa que de alguma forma teve seus sonhos desfeitos e não conseguiu outros para colocar no lugar. É uma história simples e poderosa que aparece aos poucos nos vários flashbacks que parecem influenciar de alguma maneira a própria vivência do personagem do presente enquanto ele tenta resgatar (ou criar) os laços com seu pai. E creio que é quando nos damos conta de que Jimmy não é uma pessoa qualquer, mas sim qualquer pessoa, ou seja, que seus dramas são os nossos, que eles não são mais fáceis de lidar porque todos enfrentam os mesmos problemas, com pequenas variações, que a história nos fisga de verdade.
Esses dramas deixam marcas em todos. Marcas emocionais — temores, como em Jimmy —, e físicas — as rugas, os cabelos brancos e outros sinais. E Jimmy, ainda jovem cronologicamente, parece já um velhinho, pois tem rugas, o corpo curvado. Essa é a característica física da família Corrigan; desde criança, todos apresentam os mesmos traços. Acredito que isso é um forte indício de que Chris Ware tentou demonstrar essa tristeza pairando e sendo transmitida através do tempo, como se tivéssemos um lastro conosco mesmo no dia do nascimento. E como não existem momentos felizes na história, nas fotos os sorrisos parecem sempre sem jeito, um pouco forçados, o passado recuperado serve apenas para confirmar que ninguém era feliz em outros tempos também. A alegria precisa ser aprendida, ao contrário da tristeza, não é um dado da “natureza”.
Mais do que isso, mostra o poder de disseminação da tristeza, daí o título que escolhi. E acredito esse poder é demonstrado através da incapacidade de comunicação. Não é apenas Jimmy que não sabe se expressar. Mesmo os mais falantes, como o pai, não dizem nada e não conseguem mais do que uma conversa fiada. O avô, em sua infância, se mostra uma criança isolada, refugiada em sua imaginação, mais por falta de escolha do que por opção. “... uma ânsia insaciável de evitar que se infiltre a clareza do silêncio”. É dessa forma que o avô, ainda menino passa as horas seguintes à morte de sua própria avó, assistindo seu pai ficar estranhamente eloquente e carinhoso, numa tentativa de evitar a percepção da morte, que domina a casa. Esse é apenas um exemplo da linguagem poderosa de Chris Ware...
Na escola, enquanto as outras crianças brincam, ele fica estudando e a menina que se aproxima dele, no início, é repelida por desconfiança (“será que ela quer me maltratar como todos os outros?”), mas depois se torna sua única amiga, um cais. O que não dura muito tempo, e o menino percebe que não estava totalmente errado em seus primeiros sentimentos, logo que a conheceu. Mas a que se deve tudo isso?
Chris Ware não chega a ser otimista em relação a esse muro que afasta as pessoas. Os verdadeiros sentimentos aparecem sempre em silêncio, nas ilustrações que não vem acompanhadas de balões de fala, mas que são extremamente eloquentes por esse mesmo motivo. É como se dissesse que as palavras servem mais como um instrumento para distanciar do que aproximar as pessoas, se ao mesmo tempo em que são a expressão de algo, signos de objetos e sentimentos, também trouxessem, inevitavelmente um ruído — e esse ruído é o que atrapalha a comunicação, destitui o inteligível da mensagem e confunde tudo. Mas não é só isso. Também existe a expectativa (ou a falta dela, no caso de Jimmy e seu pai) sobre o outro. Refiro-me ao que se espera ouvir e nunca chega. É nesse ponto, especificamente que devemos focar para entender porque o avô de Jimmy, ainda menino, enfrenta tantos problemas com seu pai. De um lado, o menino, que espera amor, carinho. Do outro o pai, tornado viúvo no nascimento do filho. Nenhum dos dois jamais alcança o que espera, mesmo que o outro saiba se recusa a ceder espaço, numa disputa desigual entre um adulto e uma criança, que está sendo forjada pelo silêncio e pela censura de seus impulsos. Certamente a quantidade de páginas, detalhadas, narrando dia a dia essa relação, serve para mostrar que não são os grandes momentos, aqueles de rupturas e convulsões que moldam nossa personalidade e visão de mundo, mas sim os eventos pequenos e cotidianos. A criança vai crescendo desconfiada, ressentida, entendendo que os relacionamentos são sempre um jogo de forças, e ser adulto é poder levar uma infinita vantagem.
Jimmy por outro lado, com sua dependência da mãe chega a lembrar um pouco o livro Escuta Zé-Ninguém de Wilhelm Reich. Porque segundo o psicanalista austríaco, o homem depois de algum tempo vivendo sob a violência condescendente de uma vida administrada (pelo Estado, família, etc.), mesmo liberto, é incapaz de saber o que fazer. Jimmy fica totalmente arrasado quando descobre que precisa viver por sua conta. Sua vida perde todos os referenciais e ele simplesmente não sabe por onde começar. Ou seja, a autonomia exige aprendizado. Mas Jimmy nunca teve um pai que lhe servisse de exemplo, mesmo que negativo, a que pudesse se contrapor (uma lembrança infantil, em que a mãe passa apenas uma noite com um dublê do super-homem surge como única referência paterna do menino). Foi dominado e se tornou dependente emocional da mãe, cedendo rapidamente a suas chantagens.
E essa referência não é por acaso. À medida que a história avança, nosso protagonista vai sofrer com as incertezas da liberdade. Em seus devaneios se refere metaforicamente a seu território, quando pensa na mãe. Essa associação afetiva entre o amor materno e o espaço simboliza claramente o útero, de que não foi capaz de sair ainda, mesmo aos 36 anos. E isso é tão verdadeiro que em determinado momento vai se refugiar em outro território: o cubículo que lhe é reservado em seu trabalho, mesmo sendo dia de ação de graças. Ou seja, está sempre tentando estabelecer uma referência que limite seu olhar e possibilidade de ação.
Os quadros são limpos, geralmente com os personagens e poucos objetos ao redor. A ênfase é na narrativa, alguns quadros em sequência precisam ser interpretados, porque tem uma pequena diferença entre si. É nesses detalhes que a história vai acontecendo, como o voo de um pássaro, que colhe um graveto no gramado e o leva para construir um ninho, isso para substituir a maneira tradicional de dizer que o tempo passou e que a ação retoma em um ponto mais à frente. Por esse motivo, para quem não tem paciência, que não costuma prestar atenção aos detalhes, a HQ pode parecer um enorme desvario, ou desafio.
Jimmy Corrigan – o menino mais esperto do mundo é um verdadeiro objeto de arte produzido em série. A edição é primorosa, as ilustrações são lindas, daquelas para admirar por horas, usar como papel de parede, sei lá. E é um objeto de arte porque Chris Ware faz referências ao design dos períodos que trata e os subverte, lhe dando novos usos. Não é mesmo uma HQ convencional, nem visualmente, nem na própria edição e nem na maneira de contar uma história simples e comovente. Embora visualmente sofisticada, não me parece nada arrogante. As ilustrações complementam o texto e vice-versa. Uma HQ de leitura difícil, não dá para negar, complexa e que tende a afastar leitores acostumados ao convencional. Por outro lado, para quem tem uma visão mais livre, não pensa que quadrinhos deve ser uma leitura visando apenas distração e que se interessa por dramas, é maravilhosa.