Wellington 04/06/2021
O Idiota – 8,5
Ah, Dostoiévski. Seus escritos deixam um quê de amargo na boca, mas poucos autores geram tantas lembranças duradouras.
Idiota, aqui, não se refere a um babaca ou cretino, mas a alguém simples, epiléptico, ingênuo, etc. Só por este viés, a história toda já vira ao avesso do que poderia ser esperado. Míchkin, o protagonista, é tido como uma mistura de Cristo com Dom Quixote – algo adequado por ser bondoso, misericordioso, como o primeiro e inapto à sociedade vigente, perdido em seus próprios devaneios, como o segundo. É fácil sentir estima por Míchkin.
Se a escrita é definida por um “realismo psicológico”, O Idiota é indicativo da exatidão de tais termos. Vários personagens significativos são apresentados, cada um com suas vidas bem exploradas. Senti encanto por alguns: Vera, Lizavéta Prokófievna, Kólia, o general Ívolguin... Há diálogos, histórias, reviravoltas, honestidade (mesmo quando desonesta!), profundidade, visões de mundo... Guardo com carinho uma passagem em especial: “os vagões que levam pão para a humanidade, se não estiverem cautelosamente consignados sob uma base moral, podem estar friamente excluindo da felicidade desse pão uma outra parte considerável da humanidade, aquela donde esse pão foi tirado”.
À edição: comprei o box pela capa, o projeto gráfico da Nova Fronteira é lindo. Traduzido do francês, ao invés do russo? Sim, e ainda por cima com nenhuma tradução sobre as passagens em francês. Sem falar no linguajar antiquado. Eu não recomendaria a edição para desacostumados com literatura russa pela ausência de notas explicativas. Ah, e a pintura da capa se parece com Rogójin, não com Míchkin. Mas é um projeto realmente lindo, o prefácio foi encantador; o que direi a seguir advém dele.
Dostoiévski era epiléptico, como o protagonista. Lhe foi extenuante a escrita do livro, tendo levado vários anos em que o vício pelo jogo, o luto doloroso por uma filha, endividamento, cobranças de editores, vida conjugal, distância da Rússia, comparações, julgamentos, etc., foram temas subjacentes à obra. “Dizem-me que devo me espelhar em Tolstói? Vejam as condições em que estou escrevendo!”. Insatisfeito até o fim, crê que foi incapaz de se expressar de forma desejável, tendo se consolado com o fato de que alguma coisa de bom deve ter feito.
Minha opinião? Fez sim, meu caro. E digo mais: as dificuldades pessoais enriqueceram a obra, mesmo que, por vezes, me fosse possível visualizar o custo que cada página teve. O livro é longo, há partes angustiantes; também há momentos de relativa calma e serenidade... Quase como a vida do autor.
O destino de vários personagens é esperado, mas o que realmente impacta não é o fim; é o caminho pelo qual se chegou até ali. Pessoalmente, prefiro suas outras obras. O Idiota me parece recomendável a quem gosta de literatura russa, psicologia, da própria Rússia, ou de profundidade literária em geral. É uma boa companhia.
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