A grande morte do conselheiro esterházy

A grande morte do conselheiro esterházy Alberto Lins Caldas




Resenhas - A grande morte


1 encontrados | exibindo 1 a 1


Krishnamurti 31/01/2019

Servidão humana ou o enfrentamento do horror (?)
“Discours de la servitude volontaire” ou “Discurso da servidão voluntária” é texto provavelmente datado de 1547, e publicado em 1563, ano da morte de seu autor o humanista e filósofo francês Étienne de La Boétie (1530-1563). La Boétie perguntava-se como um único tirano poderia manter sob o seu jugo milhares de homens e dezenas de cidades. Dentre as inúmeras conclusões a que chegou há uma fundamental: “É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, o procura.” À época isso se dava, segundo observação do próprio autor, porque um pequeno número de súditos obtém a confiança do tirano e dele se aproxima, compartilhando de seus desmandos e recebendo seus favores. Esse pequeno número de homens dispõe de seus próprios súditos, que também compartilham de seus desmandos e recebem seus favores. Mantêm uma série de subordinados, os quais possuem também seus próprios subordinados. Formam-se, dessa forma, relações de favorecimento e obediência em múltiplos níveis ou instâncias. Todas essas instâncias controlam a malta ignorante pela força e, principalmente, pela enganação das políticas de “pão e circo” e dos discursos religiosos e supersticiosos que envolvem o tirano em um manto de devoção. Tece-se assim uma rede de favores e concessões, em que um homem deve obediência a outro, em uma teia cuja ponta leva, em última instância, ao tirano. De qualquer sorte o que levava a isto era o fato de que os homens, por hábito, ignorância e fraqueza moral, voluntariamente se submetem à tirania.
Depois de Étienne de La Boétie, certamente muitos fizeram questionamentos semelhantes, e por certo chegaram a conclusões de acordo com as mudanças operadas nos regimes, nas sociedades e todas e tantas mutações que os “tempos” impuseram. Hoje já não há sentido falarmos em tiranias absolutistas encarnadas em um único homem. O buraco se aprofundou. E como! Tudo isso nos faz lembrar também de uma célebre frase (bem mais recente), de George Orwell (1903-1950): “A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa.” Mas o buraco continuou a afundar-se mais ainda nos estreitos limites de nossa situação pós-moderna. Outro que anda pensando nessas ‘sensaborias’ é o filósofo alemão de origem sul-coreana Byung-Chul Han. No opúsculo de “Sociedade do Cansaço”, ele discute a ascensão de um novo paradigma social, em que a sociedade disciplinar de Foucault (mais um que entrou no samba do crioulo doido), é substituída pela sociedade do desempenho. Esse novo modelo social é movido por um imperativo de maximizar a produção do Sistema. “Nós, sujeitos de desempenho, somos constante e sistematicamente pressionados a aperfeiçoar nossa “performance” e aumentar a produção”.
E por isso produzimos. Produzimos até a exaustão. E, mesmo cansados, continuamos produzindo. Uma meta é sempre substituída por outra. A tarefa nunca acaba. É frustrante e esgotante. E ao lado disso, como nunca na história da humanidade, cristalizou-se positivamente a Normose que é um conceito de filosofia para se referir a normas, crenças e valores sociais que causam angústia e podem ser fatais. Em outras palavras "comportamentos ditos normais de uma sociedade que causam sofrimento e morte". Dessa forma os indivíduos que estão em perfeito acordo com a normalidade e fazem aquilo que é socialmente esperado - "o que todo mundo faz"-, acabam sofrendo, ficando doentes ou morrendo por conta das normoses. O resultado é uma sociedade que gera fracassados e depressivos, a quem só resta recorrer a medicamentos para continuar produzindo mais eficientemente.
Exaustos e correndo é a condição humana de nossa época. O corpo humano não aguenta, lógico, e o tal do corpo virou um empecilho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, se deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Está devidamente instaurada a violência psíquica que tem outros ingredientes, como a propagação do medo em todas as latitudes e nos mínimos detalhes. Viramos os tiranos de nós mesmos quando instalamos nas cabecinhas vazias da maioria esmagadora dois conceitos fundamentais: o de que o indivíduo deve se explorar livremente em benefício do sistema, e ainda por cima, é capaz de jurar “de pé junto” que isto o realiza. O paradoxo se sofisticou. A coerção foi plantada de dentro para fora. Nada de parar a correria, nada de contemplações, nada de pensar ou criar.
Muito bem; toda esse prelúdio tem o propósito de apresentar a obra “A grande morte do conselheiro esterházy”, que é o título do romance do senhor Alberto Lins Caldas, recentemente publicado pela Editora Penalux. Antes de seguirmos adiante, vale a pena um ‘parêntesis” sobre o autor e sua obra. O senhor Alberto Lins Caldas vem se notabilizando por construir uma literatura que não faz concessão à facilidade, e à mesmice. Seus temas quer na prosa, quer na poesia, são densos, inquietantes, focando os conflitos e dilemas do ser perante a vida aqui e agora. Sempre a surpreender em construções formais inovadoras, a provocar incômodo com o propósito de sair do lugar comum. E o faz com veemência, ardor, revolta, empenho, e notável capacidade de tecer enredos e situações com uma imensa variedade de informações e situações que ele entrelaça de forma a construir uma literatura instigante que envolve o leitor inapelavelmente, fazendo-o refletir profundamente. Um guerrilheiro da literatura que não hesita. Em um de seus textos, escreve ele: “meus livros sempre foram o que denomino enfrentamento do horror.” Aí temos o criador febril.
Voltemos ao livro, ou romance que nesse caso é um enquadramento genérico a bem dizer. O que a primeira vista parece um monólogo interior, configura-se, à medida que a narrativa avança, em um solilóquio. Ou seja, um longo discurso pronunciado de maneira bem mais estruturada e articulada que o monólogo interior. A obra se inaugura com um depoimento aberto, franco: “só falta falar. mesmo sabendo q as palavras não são nada só falta falar. é isso q minha pessoa tem pensado a vida inteira. mas minha pessoa nunca fez isso nem consigo mesma. se deixar levar pelo dizer. mergulhar no q sempre foi tudo e é sempre a última palavra. retornar pro essencial. não de quaisquer vidas mas da vida de minha pessoa com o conselheiro esterházy a vida de minha pessoa depois do conselheiro esterházy a vida de minha pessoa durante a longa dolorosa estranha morte de duzentos e setenta e dois dias do conselheiro esterházy”.
Pronto, É aí, e de cara, que o leitor, se questiona se não houve revisão gramatical, ou o autor está a contrapelo de normas e convenções? De fato, a supressão intencional da pontuação e palavras, ao lado de uma linguagem coloquial e ainda bastante simplificada faz parte de uma estratégia que busca, por certo, a fidelidade ao fluxo do pensamento que corre sem peias. Avancemos um pouco mais no enredo fornecendo ao leitor para maior esclarecimento da trama, algumas informações: a começar pela identidade do tal conselheiro. Esterházy é (ou foi), uma família nobre húngara com origens na Idade Média. Desde o século XVII, eles estavam entre os grandes magnatas latifundiários do Reino da Hungria durante o tempo em que fazia parte do Império dos Habsburgos e depois da Áustria-Hungria. {esta informação não está no livro}. Muito bem; a voz que nos fala é a do novo mordomo do tal conselheiro que refere-se a si mesmo apenas como “a minha pessoa”. Essa pessoa assiste a morte do tal conselheiro que demorou exatos duzentos e setenta e dois dias para se consumar, ou seja, o tempo de uma gravidez humana. Portanto a narrativa já se inaugura no ritmo forte da metáfora. O cenário em que tudo acontece é o interior de um castelo, mas precisamente no quarto do conselheiro, espécie de catacumba escura com “seu inescapável fedor sulfúrico e velho de charutos negros e mortos.” O mordomo ali vive em companhia do conselheiro “desde q o papai e a mamãe de minha pessoa entregaram minha pessoa pro conselheiro esterházy”. Para servir o conselheiro claro. A narrativa gira em torno das angustias temores e descobertas que a convivência provoca no jovem mordomo, sobretudo quando houve do conselheiro: estou morrendo. Esse o conflito básico. Estará mesmo o conselheiro à beira da morte? Como isso se dará? Que relações serão estabelecidas entre servo e senhor? O que afinal é ter uma grande morte ou uma “minúscula e esquecível morte”? Temos por certo como metáfora gigantesca e inaugural o embate entre a juventude e a decrepitude. O novo desejando frutificar e o decadente a se perpetuar? Tantas e tantas ramificações filosóficas podem advir de uma situação assim, e de fato é o que sucede. A começar pela imensa inércia do mordomo que mesmo naquela condição de completa estupidez existencial busca o reconhecimento do senhor, dos desejos do senhor, e por isso trabalha, por isso é capaz de quase tudo. É um personagem que chafurda na lama da servidão de nosso tempo de extrema complexidade. Uma complexidade que positivamente nem George Orwell com sua profunda consciência das injustiças sociais daria conta de imaginar, menos ainda Étienne de La Boétie. Viram como o buraco a que nos referimos anteriormente se aprofundou? Muito mesmo. Mas do que estamos afinal a falar?
Por dentro do livro, o autor vai tecendo sua história com o que vai se passando ( e transformando) no interior do mordomo, dentro de uma condição em que seus atributos humanas vão aos poucos descendo degraus que praticamente inviabilizam a existência. Uma condição de quase objeto. Não entremos em detalhes que tirariam ao leitor o prazer da própria descoberta. Frisemos, todavia um e outro ponto. Vale observar no segundo capítulo o painel incisivo da condição humana quanto à solidão essencial que nos caracteriza: “...e toda terra é somente solidão nos distinguimos um do outro somente pela consciência dessa solidão pois tamo sozinhos em todas as circunstâncias.” Outro ponto de destaque: A perspectiva do jovem mordomo é francamente de um niilismo existencial no qual a existência não tem qualquer sentido ou finalidade e, por isso, o homem não procura um sentido e um propósito para a sua existência. Para ele a existência se resume “tão somente à ilusão dolorosa do horror de viver”. Fica a pergunta. Ele é mesmo assim por natureza, ou fruto da condição em que nasceu e é obrigado a viver?
Por outro lado, é sujeito de apurado senso ético que identificamos no 3º capítulo, boa parte dele a analisar a banalização do mal entre os homens, e isto nos leva a pensar se não é exatamente assim, nessa levada (para usar um termo mais ameno), que vamos incutindo nas gerações seguintes o conceito do mal: “minha pessoa não pode recusar o mal não aprendeu a recusar o mal. a única escolha q foi possível foi o mal e no malestar o malviver o malsonhar jamais escolher o bem o bem-viver nem mesmo o bemmorrer. o mal e malestar. nem mesmo o grande mal ou o grande malestar do conselheiro esterházy. tão somente o pequeno mal engolido pelo grande mal sentindo na carne por dentro da carne esgotada somente o pequeno malestar sem saber porquê. porq o mal não se separa das cousas não se separa dos sonhos da carne do desejo da memória do riso. porisso ele não é traiçoeiro não é covarde não é mesquinho. ta sempre aqui. quem não vê quem não toca quem não percebe vive no mal e o mal vive nele. porq não é violento não é força não é espalhafato nem convencimento. é cousa mansa cousa pacífica cousa q cochila cousa q roça q atravessa cousa que ri cousa q chora cousa tenra q nasce cousa que vive cousa que morre cousa q fala cousa q se cala cousa no espelho cousa no olho cousa na língua cousa de esquecimento”.
Vejamos uma das conclusões que esse espectro humano chega, e já quase ao final de sua saga de “duzentos e setenta e dois dias” acompanhando o desencarne – desencarne não, que é palavra exagerada para o contexto, o expirar do conselheiro ( expirar verbo intransitivo: Deixar de existir; morrer): “nada substitui a vida enquanto viver substitui violentamente segundo a segundo o próprio viver. a vida é constantemente substituída por outra vida. todas as vidas anteriores mergulham no mais atroz esquecimento porq é do esquecimento q essa vida essa forma de vida servil [grifo nosso] se alimenta. nem a força nem o poder nem a loucura nem a palavra nem a arte nem o nascer dos filhotes consegue diminuir o impacto desse esquecimento. é deformando tudo ao seu redor deformando antes deformando durante deformando depois q a vida continua a vida gera mais vida mesmo naqueles iguais a mim q nada geraram e porisso torraram a vida. quaisquer esperanças de sobrevivência é somente o tempo onde todas as cousas se deformam pra serem esquecidas.”
Parafraseando o mordomo narrador: “só falta falar. mesmo sabendo q as palavras não são nada só falta falar” e perguntar: quem ao fim e ao cabo estará morto em toda essa trama? Quem viverá? “A grande morte do conselheiro esterházy” é um mergulho fundo num mundo onde as certezas sobre o que somos e como vemos as coisas são apenas borrões. Um mundo em que paralelamente aos valores que desaparecem, nada resta a não ser um tremendo vazio existencial, que via de regra deságua na violência sem limites, num limiar entre a animalidade e o aquém da animalidade, uma zona que sequer conseguimos nomear. Entretanto não há nada definido, mesmo que no percurso de se encontrar no mundo sejamos jogados no mais puro abismo onde o mal olha-nos ameaçadoramente nos olhos. Não é consolo, menos ainda suposição. O fato inconteste é que há também, como sempre houve aqueles(s) de nós, que o miram de volta e o enxergam em toda a sua profundidade, ou melhor, que percebem que o mal nada mas é do que o rebento de nossa própria ignorância. Esse o horror a enfrentar. Compreender tal realidade é a única forma de eliminá-lo definitivamente.
Livro: “A grande morte do conselheiro esterházy”, Romance de Alberto Lins Caldas. Editora Penalux, Guaratinguetá – São Paulo, 2018, 206p.
ISBN 978-85-5833-465-5
Link para compra e pronto envio:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/alberto-lins-caldas/a-grande-morte-do-conselheiro-esterhazy
comentários(0)comente



1 encontrados | exibindo 1 a 1


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR