spoiler visualizarLetícia.Lari 01/06/2020
Uma ficção científica repleta de filosofia
"Além do Planeta Silencioso" é o primeiro livro de ficção científica da Trilogia Espacial escrita pelo irlândes C. S. Lewis. A obra foi publicada pela primeira vez em 1938, resultado de uma aposta entre ele e seu amigo J. R. R. Tolkien, famoso pela sua obra "O Senhor dos Anéis" e "O Hobbit".
Como apresentado na sinopse do livre, os temas da aposta foram escolhidos no cara ou coroa: Lewis ficou com viagem no espaço, e Tolkien com viagem no tempo. Segundo o biógrafo A. N. Wilson, os dois amigos lamentavam o estado da ficção contemporânea, por isso criaram a aposta. A história de Tolkien existe apenas como um fragmento, publicado em The Lost Road e outros escritos (1987) editados por seu filho Christopher. Já Lewis foi além, e escreveu uma trilogia inteira sobre o assunto, inspirado e influenciado pela obra de David Lindsay, A Voyage to Arcturus (1920).
O primeiro livro da trilogia apresenta o Dr. Elwin Ransom, um filólogo e pesquisador em uma das faculdades de Cambridge, e acredita-se que Lewis se baseou na figura de Tolkien. A viagem começa quando Ramson é sequestrado por dois cientistas: um antigo colega de escola, Devine, e por um físico, Weston. Ele é levado por eles em uma nave espacial até Malacandra (Marte, como o conhecemos). Certo de que ele havia sido levado para ser entregue às criaturas que habitavam aquele planeta para ser sacrificado, assim que tem uma oportunidade, ele foge, sozinho, para dentro das florestas daquele mundo.
E então, Lewis nos leva para uma aventura cheia de questões filosóficas e teológicas sobre o que é a vida? o ser humano? e os animais? o que os diferencia? e como as culturas se diferenciam? como o universo foi criado? existe um Deus? São perguntas que o personagem faz às criaturas daquele mundo, mas também se questiona sobre o seu próprio mundo. É uma bela leitura que nos faz refletir sobre esses assuntos. E que consequências a chegada de um humano pode trazer à esse mundo? Dominação? Aprendizado? Exploração? Por que a Terra tem tanta maldade e violência?
Malacandra é diferente da Terra (chamada de Thulcandra no livro) em alguns aspectos: sua paisagem, seus habitantes e sua religião. Quanto à paisagem, Lewis entra numa explicação física para sua aparência, a gravidade é mais "leve" lá do que aqui. Por isso, as formas animais e vegetais são mais alongadas, elas conseguem crescer mais verticalmente. A geologia do planeta é marcada por handramits (terras baixas) que cortam as harandra (terras altas). As cores também são marcantes, azul, púrpura, vermelho, verde, não tanto como o conhecemos. Seus habitantes são como animais a primeira vista, mas Ramson logo percebe que eles são hnaus (usando a linguagem malacandriana), ou seja, são seres racionais. Se aqui na Terra há apenas um, o homem, lá há três: os hrossa, os sorns e os pfifltriggi, cada um com sua cultura e suas características, mas todos são seres inocentes e sem pecado, que vivem em harmonia com o resto dos mundos e que nunca conheceram a maldade. Os hross são músicos, os sorns são os mais inteligentes e os pfifltriggi constroem coisas. Todos governados por um ser: o Oyarsa, uma inteligência ou espírito tutelar de um planeta, sendo ele o servo de Maleldil, esse sim o grande Criador de tudo. Segundo o Oyarsa de Malacandra, a Terra tem um Oyarsa rebelde e "torto", que não se comunica com os Oyarsas dos outros planetas, e que trouxe a maldade, a discórdia, a guerra, a fome e todas as desgraças ao planeta, tornado-o um planeta silencioso e isolado - daí o nome do livro.
Deixarei aos próximos leitores para descobrirem mais a respeito de Malacandra. A leitura é leve, reflexiva e cativante. Desperta uma vontade de falar e entender a língua deles, certamente uma criação incrível de Lewis, a qual, convenhamos, já vimos em Nárnia e na língua dos elfos criados por seu amigo, Tolkien. Falando em Nárnia, ela em muito dialoga com Malacandra: dois mundos alternativos criados por ele, com criaturas diferentes, governadas por um Ser maior. Lembrando que "Além do Planeta Silencioso" foi escrito quase 10 anos antes de sua obra mais conhecida: "As Crônicas de Nárnia".
A parte genial do livro, do meu ponto de vista, é o final: depois de apresentar toda a história ao leitor, Lewis traz uma carta do "verdadeiro" (não sabemos se ele realmente existiu) Dr. Ramson que eles trocaram para escreverem o livro. E fica aí o grande questionamento: tudo isso foi real? Cabe ao leitor decidir acreditar ou não, mas definitivamente deixa uma "pulguinha" atrás da orelha de cada um.
Em um artigo chamado "Religião e foguetes” (que originalmente se chamava Will we lose God in outer space? [Perderemos Deus no espaço sideral?]), Lewis resume bem o tema do livro, afirmando:
"Nós sabemos o que nossa raça faz com estranhos. O homem destrói ou escraviza todas as espécies que pode. O homem civilizado mata, escraviza, engana e corrompe o homem selvagem. Mesmo a natureza inanimada, ele a transforma em poças de areia e montes de escória. Existem pessoas que não o fazem. Mas elas não são do tipo que provavelmente serão nossos pioneiros no espaço. Nosso embaixador para novos mundos será o aventureiro necessitado e ganancioso ou o perito técnico implacável. Eles farão o que sempre fizeram. O que acontecerá se eles encontrarem coisas mais fracas que eles, o homem negro e o índio podem dizer. Se eles encontrarem coisas mais fortes, eles serão devidamente destruídos".
ps.: uma recomendação a quem for ler o livro, procure imagens na internet. Tem artes lindas que retratam Malacandra e que tornam mais fácil imaginar esse mundo, que, por ser tão diferente do nosso, às vezes é difícil imaginá-lo fielmente. Deixo o link de uma que gosto muito: https://www.deviantart.com/rebel-penguin/art/Malacandra-by-boat-85693719