Laiza 04/12/2020
O Bom Filho - You-jeong Jeong
Yu-jin acorda com um gosto de sangue na boca. Logo, ele imagina que antes de pegar no sono tenha tido um ataque epilético, algo que ele toma medicamentos diariamente para evitar. Porém, ele se assusta ao perceber que sua cama está coberta de sangue. Atordoado, ele levanta, e ao andar pela casa ele descobre o corpo ensanguentado e frio de sua mãe ao pé da escada, além de sangue espalhado por toda a parte. Sem se lembrar do que aconteceu na noite anterior, Yu-jin entra em uma busca frenética para descobrir como tudo aconteceu. Afinal, ele tentou salvar sua mãe ou ele é culpado pelo que aconteceu?
"O esquecimento é a única maneira de lidar com o irremediável" p. 217
"Só agora percebi que todas as pistas apontavam para uma única pessoa: eu" p. 24
Esse livro com certeza foi uma experiência literária bem diferente de tudo que eu já li. Logo nas primeiras páginas, me vi presa na narrativa. A narrativa em primeira pessoa é fria, direta e cortante. Conforme Yu-jin confronta as suas memórias da noite anterior e tenta descobrir o que aconteceu com sua mãe, o próprio também entre em uma jornada de autoconhecimento, em que revira seu passado e seu relacionamento com a família. O tratamento para a epilepsia e o uso contínuo de medicamentos e seus efeitos colaterais, bem como a vigília constante de sua mãe, Ji-won, e tia, Hye-won, sempre foram obstáculos que sufocavam e o prendiam a uma rotina monótona. A partir disso, a autora calmamente abre espaço para a discussão sobre o psicológico e o emocional de Yu-jin.
"Eu precisava descobrir o que havia acontecido. Não me contentava com uma dedução baseada em provas. Precisava descobrir se havia outra pessoa dentro de mim, uma pessoa totalmente diferente do que eu acreditava ser. Sem saber o que essa outra destrua pessoa havia feito, eu não tinha como continuar a viver neste mundo. Eu precisava descobrir o que havia acontecido, mesmo que isso abrisse as portas do inferno". p.51
"Mamãe e titia haviam envenenado minha existência com aquelas drogas: o remédio era uma serpente que me mordia o calcanhar em todos os momentos importantes da via"p.93
Narrativas em primeira pessoa sempre levantam suspeitas a cerca da veracidade dos fatos narrados e a maneira como o próprio personagem observa e analisa as situações e as pessoas em sua volta. O leitor em nenhum momento confia completamente no que está lendo, já que o personagem encontra-se confuso, atordoado e em choque com o que está acontecendo. A busca pelos fatos também torna-se uma busca para o próprio Yu-jin compreender quem ele realmente é, então enquanto vamos desmembrando a vida do personagem, a autora vai construindo a personalidade e o psicológico dele. Sendo este o ponto principal da trama. Então, temos em mãos uma atmosfera eletrizante, sombria e assustadora, que prende o leitor até que ele termine o livro.
"A realidade se fixou. A escuridão me envolveu e pressionou como as portas de um abismo. E abaixo dos meus pés, a porta da memória, fechada com tanta firmeza, começou a se abrir". P.52
O relacionamento de Yu-jin com sua família são parte fundamental para a compreensão do personagem. Mãe e tia sempre foram as inibidoras da vontade de Yu-jin, preocupadas com sua epilepsia e controlando os medicamentos que ele tomava. Os medicamentos em si representam para o personagem um controle e desgaste no dia dia; Yu-jin constantemente observa que os remédios o deixam mais lento e cansado, entre outros efeitos colaterais; ele sentia que era pessoas diferentes com e sem a medicação. Hye-woon proibiu o filho de praticar natação na infância, algo que ele adorava, pois para obter melhores resultados ele fingia tomar os remédios. Todas essas situações em sua infância e agora em vida adulta, são pontos centrais que o levam a refletir qual a verdadeira necessidade do uso desses medicamentos, para que de fato eles serviam? Então, Yu-jin, agora adulto, sempre procura brechas e situações para justificar e pular alguns horários; pois parece mais solto e disposto sem eles. O controle de sua família são sufocantes, levando a Yu-jin a culpá-las pela sua infelicidade e pelo seu fracasso. Já o seu irmão, Hae-jin, representava o ponto de fuga no qual Yu-jin poderia correr, já que Hae-jin sempre o ajudou e confrontou sua mãe. Apesar dessa conexão entre os dois, Yu-jin sempre notou que a preferência da mãe era sempre pelo seu irmão, tornando a comparação entre ambos inevitável.
"Tirei o capuz e olhei para Hae-jin. Seus olhos sorriam suavemente. Aquele sorriso foi um presente para mim. Se mamãe era a pessoa que despejava o medo e a frieza em meu sangue, Hae-jin me aquecia como o sol, sempre ao meu lado." p.39
"Eu me sentia mais livre na água do que na terra, e a piscina era mais confortável que a escola ou a minha casa. Dentro da água, mamãe não podia me perseguir. Lá, eu pertencia somente a mim mesmo. Podia fazer o que quisesse. Era livre" p. 94
O desenvolvimento da narrativa e dos acontecimentos se dá a partir de elementos e situações que já são previamente percebidas pelo leitor; já compreende-se como a história irá prosseguir. Mas a obviedade e facilidade com que algumas situações ocorrem não foram pontos que me decepcionaram. Na verdade, a maneira com que aos poucos a autora vai construindo a personalidade Yu-jin, seu sentido de autopreservação, a falta de sentimentos, moral ou culpa pelo seus atos, são feitas de forma mestral e de tirar o fôlego. A única coisa que para mim foi um ponto fora da curva, foi o epílogo do livro, que para mim acabou um pouco forçado demais; acho que se a história tivesse ficado no ponto final, sem o epílogo, com algumas dúvidas no ar, teria sido mais interessante. Mas é claro que foram escolhas narrativas da própria autora.
"Lendo isso, me convenci de que a culpa é uma questão de verossimilhança, e a moralidade tratava-se apenas de pintar um quadro que se apresentasse de forma convincente aos olhos dos outros" p.101
"Em outras palavras, não nos amávamos mais. E, pensando bem, talvez esse negócio de amor não estivesse mesmo nos planos de Deus. Se assim fosse, Ele teria criado um mundo onde todas as criaturas se amassem naturalmente. Em vez disso, criou uma cadeia onde os mais fortes devoram os mais fracos" p. 271
No geral, para mim foi uma leitura totalmente fora da minha zona de conforto. Em uma história fria e sombria, somos arrastados para os aspectos mais assustadores da mente e da violência humana, e fez com que eu sentisse intensidade e força no que eu lia. Essa foi minha primeira experiência com a literatura sul-coreana e já tenho muita vontade de ler mais obras e conhecer novos autores. Já vi que o livro será adaptado, então estou ansiosa para ver como será a adaptação! E você, ficou curioso com o livro?
"Não se engane. O vencedor é quem continua vivo" p. 282
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