O amor, esse obstáculo

O amor, esse obstáculo Micheliny Verunschk




Resenhas - O amor, esse obstáculo


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Toni 29/04/2019

É difícil ignorar que todos os títulos do tríptico infernal da M. Verunschk aludem a um descompasso afetivo: coração e inferno, coração e peso, amor (coração) e obstáculo. Esses elementos remetem às esferas privada e pública de nossa traumática história recente, e vivem em tensão ao longo da narrativa da escritora pernambucana. Neste último livro da trilogia, a história de Laura completa seu ciclo de formação com o retorno da protagonista à Santana do Mato Verde, cidade de sua infância, após a Comissão da Verdade e o (suposto) suicídio de seu pai torturador de mulheres.
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Decidida a conectar os fios soltos da memória de sua família, Laura se depara com as valas comuns da memória nacional: documentos e envelopes e histórias oficiais que escondem as monstruosidades de nosso passado. A ditadura, na trilogia de Verunschk, não rouba apenas vidas, corpos e nomes, mas também a noção de pertencimento, o sentido de coletividade, a estima pela memória. O que resta, parece dizer o romance, é a fabulação, a capacidade da literatura de cumprir com o desejo da narradora, de fazer com que “o mar se levantasse e devolvesse os mortos que foram atirados do céu, que cada um dos desaparecidos nos voos da morte retornasse com seu nome, suas histórias, seus dedos refeitos em coral e sal a apontar os culpados”.
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O “mal de Alzheimer nacional” de que fala B. Kucinski na abertura de ‘K. Relato de uma busca’, ressurge na trilogia de Verunschk na forma da personagem da madrasta de Laura que guarda a revelação mais esperada do romance até o último momento. Mas, assim como nosso acerto de contas com a ditadura, a trilogia não tem um desfecho catártico ou bem encerrado, deixando muito para os leitores, a sociedade, o Brasil—este desmundo em que 536 mulheres são agredidas a cada hora—resolver. A ditadura vive entre nós e ainda é possível escutar seus tambores: nas milícias de laranjais, nos espetáculos de golden shower, nas aparições em goiabeiras. A arte será, portanto, a memória e o arquivo que eles querem apagados, o risco de uma perpétua comissão da verdade.
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