Krishna.Nunes 23/04/2021Se o primeiro foi bom, este é devastadorEste é o segundo livro da duologia Semente da Terra, de Octavia E. Butler.
Publicados na década de 1990, esses livros têm tom de uma distopia quase apocalíptica. Durante um período conhecido como A Praga, que se estendeu de 2015 a 2030, mudanças climáticas associadas a uma crise política e social levaram os EUA a uma profunda recessão econômica acompanhada de escassez de água e alimentos. Isso resultou numa escalada de violência e na degradação dos direitos individuais e coletivos, levando por exemplo a situações em que escravidão e servidão eram toleradas, ainda que permanecessem ilegais, pois as pessoas se dispunham a tudo para não morrerem de fome. Os saques eram comuns e incêndios criminosos viraram rotina.
Em "A parábola do semeador", vimos Lauren Olamina, com apenas 17 anos, tendo que fugir do bairro murado onde vivia e onde acabara de perder sua casa e sua família. Vagando pela estrada em busca de um lugar no Canadá, ou qualquer local indefinido ao norte, onde houvesse terra para trabalhar, ela acaba reunindo um pequeno grupo de peregrinos dispostos a formar uma rede de apoio mútuo. Nessa jornada, ela se envolve com um homem mais velho que viajava na mesma direção e que dizia possuir terras ao norte, onde viviam sua irmã e seu cunhado.
Em meio a isso, a jovem continua desenvolvendo a doutrina de uma religião que ela havia idealizado, a partir da qual sonhava construir uma comunidade. Não passa de uma filosofia boba em torno do preceito de que "deus é mudança, mas também é maleável". Não se trata do deus pessoal da cultura judaico-cristã, mas sim um chamado à ação e ao trabalho. A coisa toda carece dos fundamentos para sequer ser chamada de religião e está mais para autoajuda. Mais adiante, uma personagem definiria a Semente da Terra como "um monte de bobagem simplista", e é verdade, mas isso é levado muito a sério nos dois livros.
"A parábola dos talentos" conta a história dessa comunidade, a partir de 5 anos depois dos fatos narrados no primeiro livro, porém de um ponto de vista diferente. Agora é a filha de Olamina quem lê e comenta os diários dos pais, com quem ela aparentemente não conviveu. O grupo conta então com aproximadamente 60 pessoas que trabalham em caráter cooperativo, numa mescla de agricultura com coleta, e praticando escambo e comércio com fazendas vizinhas e nas cidades próximas.
Entretanto, o país estava passando por uma mudança assustadora. O candidato conservador, um fanático religioso cujo slogan era espantosamente "make America great again" (o mesmo de Reagan em 1980 e de Trump em 2016), havia ganhado as eleições presidenciais. Isso por si não bastava para alterar a legislação - que já desfavorecia os mais pobres -, mas legitimava a misoginia, a violência, o racismo, a homofobia e a intolerância religiosa dos seus seguidores. Sob o pretexto de resgatar os EUA através do retorno às tradições cristãs, eles deflagrariam uma verdadeira cruzada. Essa obra de Octavia Butler esbanja contemporaneidade.
Tudo o que se segue é de uma violência absurda. Toda a tortura que um ser humano pode suportar é narrada de maneira crua e chocante, numa tentativa de expor o perigo do radicalismo e do fundamentalismo religioso, inclusive o da protagonista. Nesse aspecto, as falhas de Lauren Olamina ficam evidentes. Apesar de possuir um carisma incontestável, seus medos e incertezas são expostos ao mesmo tempo que a obstinação em favorecer sua seita em detrimento da própria família tem desdobramentos trágicos.
O discurso evangelista do novo presidente é sedutor tanto para os mais abastados, que pretendem manter seus privilégios, quanto para os mais ignorantes, que acreditam na falácia fascista de que o endurecimento seria caminho para o progresso. Aqui, as ações dos que se sentem amparados pela intolerância do presidente não ficam atrás da inquisição católica nem dos campos de concentração nazistas.
A autora nos presenteia com conhecimento histórico ao prever a ascensão de líderes carismáticos que despertam o que há de pior nas pessoas. É simplesmente aterrador ler essa distopia numa era em que esse tipo de líder tenha realmente chegado ao poder em diversas nações das Américas e deixado marcas das quais devemos nos envergonhar.