Jeff.Rodrigues 26/04/2020Resenha publicada no Leitor CompulsivoEngraçado como certas histórias, por mais interessantes que sejam, deixam uma sensação de incompletude após o término. Talvez porque sua narrativa acabe se assemelhando mais como um longo conto ou porque a percepção de que havia muito mais a ser contado fica pairando no ar. Foi meu sentimento ao concluir o segundo volume da série Crianças Desajustadas. Uma história singular, singela, trágica, lida em uma tarde e que, por fim, ficou no ar…
Entre Gravetos e Ossos conta a história das gêmeas que protagonizam boa parte das cenas do livro um, focado na personagem Nancy. Muito do que a gêmea Jack conta para Nancy em De Volta para Casa é esmiuçado e esclarecido nesse segundo livro. A obra, portanto, funciona como uma antecipação da vida das meninas pré-Lar de Eleanor West, mantendo a riqueza criativa e a narração gostosa e envolvente da autora. As semelhanças param por aí. Porque diferente do livro de estreia, Entre Gravetos e Ossos é bem mais resumido e contado em uma velocidade que, na minha opinião, acaba deixando um pouco a desejar.
Há duas características bem interessantes para se falar de Entre Gravetos e Ossos. Em primeiro lugar, a crítica familiar explícita que domina boa parte das sequências iniciais. McGuire não poupa o estilo de criação de pais que projetam nos filhos aquilo que consideram como modelo ideal de vida. As críticas são bem ácidas, mesmo com tons bem humorados. Ponto alto da história, a autora faz um bom retrato de uma sociedade em que pais despreparados acabam criando filhos traumatizados, com sonhos e desejos reprimidos e com pouco ou nenhum tato para enfrentar o mundo exterior. Há passagens destacadas entre parênteses que evidenciam bem uma realidade que faz mais parte do nosso dia a dia do que podemos imaginar.
“Crianças não são massas disformes, para serem moldadas de acordo com os caprichos do escultor, nem são bonecas vazias, mas idênticas, esperando para serem colocadas no modo que lhes cabe melhor.”
E é essa criação que faz com que as gêmeas Jack e Jill sejam desajustadas com relação ao que elas de fato gostariam ou imaginavam ser. O pai que desejava um filho e acaba transformando a filha naquilo que ele pensava que o garoto poderia ser. A mãe que desejava uma bonequinha e faz da filha alguém perfeccionista, cheia de medos e modos. E os amigos e colegas ao redor que publicamente pintavam, e elogiavam, atitudes que não eram replicadas quando estavam em suas próprias casas com seus próprios filhos. Assim, temos duas gêmeas que mal se davam bem, não eram amigas como duas irmãs poderiam ser. Quase duas estranhas convivendo no mesmo quarto, na mesma casa.
Em segundo lugar, a narrativa fantástica de Entre Gravetos e Ossos pinta um mundo sombrio dominado por criaturas já bem conhecidas dos leitores de terror. Ao transpor uma porta, sempre elas, as gêmeas se veem lançadas na Charneca, um mundo que vai lhes dar a educação e formação que os pais não foram capazes. Só que isso virá às custas de sofrimento, dor e a descoberta do amor. Cada menina seguirá um rumo bem distinto daquilo que estavam acostumadas até então. É como se elas trocassem de papel e a partir disso descobrissem as verdades da vida. A partir de um mundo fantástico elas aprendem como é o mundo real. E isso acaba trazendo um pouco de maturidade, que vai culminar, muito tempo depois, nos acontecimentos e atitudes que presenciamos lá no livro um.
A fábula um tanto educativa que Entre Gravetos e Ossos traz, esbarra, contudo, na rapidez com que os acontecimentos se dão. E foi aí que me veio a sensação de que havia uma boa história ainda a ser explorada nas experiências de Jack e Jill na Charneca. Ficou bem claro que a autora tinha em mente uma história rápida, mas ela conduziu tão bem tanto a crítica quanto o processo de formação das meninas que pessoalmente eu gostaria de ter visto mais. Independente disso, a série Crianças Desajustadas deixa claro um fôlego de originalidade incomum em publicações recentes. Há potencial, personagens e mundos variados ainda a serem explorados nos próximos volumes.
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