Toni 26/08/2019
Carta à rainha louca não é apenas o último romance de Mª Valéria Rezende: ele consegue ser, um pouco, cada livro pregresso da autora, que distribuiu referências discretas e encantadoras de suas outras obras no discurso de sua narradora, variando entre menções a seus títulos (Vasto Mundo, Outros Cantos) ao pastiche de contos e cenas presentes em O voo da guará vermelha e Modos de apanhar pássaros à mão. Ou ainda, tematicamente, no escrever como forma de manter a sanidade (que também guia a Maria de Quarenta dias).
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O romance se baseia numa carta encontrada pela autora na Torre do Tombo (Portugal) em meados dos anos 1980 na qual a signatária, Isabel das Santas Virgens, se dirigia à então rainha de Portugal, Maria I, para pedir que a soberana intercedesse em seu favor e a libertasse de um encarceramento injusto. Apesar da premissa histórica, cada linha do romance foi inventada, uma vez que a própria autora confessa que quase nada pôde descobrir sobre a verdadeira Isabel. Talvez por isso mesmo ganhe mais o romance em força e imaginação, através de uma linguagem burilada que imita o português brasileiro dos setecentos e da mistura de imaginários populares e eruditos da época.
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Impossível não chamar a atenção para os trechos rasurados, críticas e intervenções autorais verdadeiramente “anacrônicas”, mas que, articuladas como desvarios da narradora que as corta prontamente com um risco (lembrando que papel era um bem raro e não podia ser desperdiçado), enche de argúcia e olhar crítico a conturbada narrativa de uma mulher em situação vulnerável (como milhares sem título de nobreza ou renda). A visão subversiva desta “louca”, que abraça escravizados e suas iguais, transborda de lucidez e reitera, pág. após pág., aquela noção de que a loucura é, muitas vezes, puramente uma questão de quem está no poder.
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Loucos são, pois, todos aqueles que escrevem, atrevendo-se a colocar em palavra não só aquilo que há de mais belo e bonito, mas precisamente a face mesquinha e doentia de um mundo presente que insiste em esconder vergonhas imprescritíveis.