Tiago 28/05/2019
Antes de elogiar, é importante questionar a abordagem tóxica do autor
Desde sua criação, a editora Pipoca e Nanquim realiza um trabalho editorial primoroso. No meio de seu catálogo pouco óbvio, o "Mangá-Documentário: Virgem Depois dos 30" é uma das obras que mais chama atenção. Retratar um documentário em forma de quadrinhos é pouco comum, portanto sua leitura já se torna quase obrigatória para quem aprecia os dois formatos. Além disso, sua temática, que expõe um problema social japonês até então pouco debatido, munido de dados estatísticos, reafirmam a importância de sua leitura. Esses foram os motivos da minha avaliação de 3 estrelas. A falta de duas estrelas deve-se aos incômodos que descrevo abaixo.
Em sua narrativa, Atsuhiko Nakamura é repetitivo, dificultando a fluidez da leitura. Há momentos em que o balão de fala de um personagem apenas repete o que já foi escrito em um quadro narrativo. Informações e diálogos são duplicados em quadros sequenciais, como se o autor duvidasse da capacidade de interpretação do seu leitor. O ápice desse recurso ocorre no final de cada capítulo, onde é apresentado um resumo da história recém contada, incluindo poucas informações extras. Como se não bastasse, as notas de rodapés - que são um incômodo para qualquer leitor - são utilizadas nesses resumos para repetir pela enésima vez o que já foi dito ou para dar uma informação que poderia ser adicionada de forma natural, dentro do texto.
Além das problemáticas narrativas, que podem ser apenas um estilo (ruim) do autor, existem dois pontos que realmente são prejudiciais dentro dessa obra. O primeiro se refere à abordagem da figura feminina no mangá. Para Nakamura, um dos motivos para o "problema”, que resulta nos virgens de meia idade, é o isolamento que eles sofrem por parte das mulheres. Em suas próprias palavras:
“Mulheres podem ser cruéis. Muitas procuram no homem estabilidade, segurança, aparência agradável, poder econômico e facilidade de comunicação. E não têm o menor dó de excluir os que não satisfazem os requisitos.”
É importante ressaltar que nenhuma mulher foi entrevistada no Mangá-Documentário.
Com afirmações tão contundentes, e que o autor expressa com tanta certeza, seria no mínimo ético entrevistar e retratar o ponto de vista dessas mulheres. No entanto, Nakamura evita o contato feminino deliberadamente. Esse é o caso do capítulo em que o autor frequenta alguns encontros, promovidos por uma empresa especializada, em que homens e mulheres procuram se conhecer para formar casais. Diferente dos demais capítulos, em que o foco central costuma ser apenas um personagem, nesse episódio são entrevistados 3 homens (2 clientes e 1 gestor da empresa). São abordados três pontos de vista, nenhum feminino. Sendo que as mulheres são parte essencial do tema e da situação apresentada. As mulheres são retratadas durante toda a obra, mas não possuem voz ativa nesse documentário.
O empoderamento feminino, que deve ocorrer no Japão a passos mais lentos do que em outras regiões do mundo, é visto como um problema pelo autor. Afinal de contas, uma mulher empoderada tem a opção de não se relacionar, não se casar e não transar com um homem de maneira forçada. Obviamente, em uma sociedade sem mulheres empoderadas, o número de virgens com mais de 30 anos seria menor, enquanto o número de mulheres infelizes e violentadas aumentaria. Provavelmente Atsuhiko Nakamura não faria um documentário sobre isso.
Entre os motivos citados por Nakamura para o número elevado de virgens de meia idade estão: “menos pessoas se conhecendo em casamentos arranjados”, “o colapso dos valores familiares” e “o avanço da participação feminina na sociedade”.
O desgosto do autor por mulheres empoderadas e bem sucedidas fica claro quando ele descreve sua editora (a mulher que edita seus textos). Ela é apresentada através de hábitos luxuosos, frequentando restaurantes gourmets, que são descritos com cinismo e asco pelo narrador. Sua raiva ao se deparar com uma mulher bem sucedida chega ao ápice quando é retratado um diálogo entre os dois. Em determinado momento, Nakamura começa gritar com sua editora durante uma ligação telefônica. Sua violência verbal é justificada pelo simples fato dele se sentir em uma situação social inferior, mesmo que essa mulher seja a sua salvação do “inferno”.
O segundo ponto que me motivou a tirar uma estrela da avaliação é a abordagem do autor quando descreve os virgens de meia idade enquanto população homogênea. É possível observar uma empatia de Nakamura com determinados virgens entrevistados, mas ela se perde à medida que o virgem de meia idade deixa de ser um sujeito específico, tornando-se uma população problemática para a sociedade japonesa.
Apesar de mostrar, através de seus personagens, que o virgem de meia idade é resultado da própria cultura japonesa, o ponto focal escolhido pelo autor é de expor o problema - o virgem - e não a sua causa. Seu objetivo é dar luz e combater o próprio virgem, recomendando que o leitor e que a população japonesa evite contato com esse sujeito, pois ele é uma ameaça à sanidade e às normas sociais.
É preciso reconhecer que a visibilidade proporcionada por Nakamura pode ampliar o acompanhamento especializado, tão importante para os virgens de meia idade. No entanto, seria mais produtivo se o autor utilizasse seu mangá-documentário para ampliar o debate e focalizar nos momentos em que expõe a indústria cultural japonesa e os comportamentos da sociedade, que resultam nos homens virgens com mais de 30 anos, ao invés de atacar sua própria existência.
O mangá é bom, seus dados são tão impressionantes, quanto preocupantes. Mas antes de repetir elogios de forma robótica, é importante questionar o viés abordado pelo autor. Infelizmente, Nakamura é apenas mais um sujeito que reforça uma sociedade patriarcal e falocêntrica, e que teve a "sorte” de não se tornar um virgem de meia idade.