jota 22/05/2022NÃO APRECIEI MUITO a leitura que fiz dessa obra, mas pode ser que você a aprecie loucamente, quem sabe?Lido entre 13 e 20/05/2022. Avaliação da leitura: 2.8/5,0
ATENÇÃO: o texto traz algumas citações de Leminski contendo palavrões e expressões "inapropriadas"
Nas informações bibliográficas de Agora é Que São Elas (Iluminuras, 2011), de Paulo Leminski (1944-1989), consta que a capa dessa edição foi bolada por Eder Cardoso “sobre imagens da deusa Nut, encontrada em sarcófagos de faraós no Egito”. Que as figuras representadas tinham a ver com hieróglifos egípcios, escrita pictórica que levou muito tempo para ser decifrada etc., disso eu não tinha dúvida alguma. Teria sido proposital? Porque depois de lida a obra veio a certeza: como os hieróglifos egípcios, os textos de Leminski também precisam ser decifrados, não dá para entender sua escrita logo de cara. Ah, mas tem apresentação e posfácio pra ajudar, não? Sim, iremos a eles em seguida.
A apresentação do livro e seu autor começa na capa traseira e termina em suas orelhas. É um texto escrito pelo poeta Elson Fróes, que também já traduziu para o português obras poéticas de renomados autores. Fróes inicia sua louvação escrevendo que “Leminski no círculo dos escritores mais inventivos se ombreia em talento com Joyce, Rosa ou Carroll no fabuloso Catatau, seu aclamado primeiro livro, e a um Italo Calvino ou Cortázar neste "Agora é que são elas".” Bem, lendo tudo isso só pude pensar que Agora... prometia muito. Mas entregaria? Eu pensava em encontrar nessa prosa de Leminski não a mesma excelência que encontrei no ótimo Toda Poesia (Companhia das Letras, 2013), mas ao menos algo parecido.
E Fróes prossegue: “Sempre genial no que fazia, Leminski saiu-se com esta: “O romance não é mais possível."Agora é que são elas" é um romance sobre a minha impossibilidade de fazer um romance”. E lançou então esta narrativa, em lúdico e atrevido exercício, misturando todo seu repertório e talento como poeta, tradutor, ensaísta, publicitário, músico e transgressor inventivo de diversas normas.” Agora é Que São Elas seria então para Fróes um “suprarromance”, onde encontramos, tudo junto e misturado: “paródias, ironias, citações várias, inversões de perspectivas, norma culta ou linguajar desbocado.” De fato, é isso mesmo o que ocorre nessas páginas. E nem tudo é lá muito palatável...
Você continua lendo o texto de apresentação e quando chega próximo do final, um tanto do seu entusiasmo inicial diminuiu consideravelmente porque parece que essa leitura não será muito facilitada por Leminski. Fróes confirma isso: “Além das aparências, este definitivamente não é um romance fácil ou superficial. E a crítica vem se desdobrando em análises para lhe renovar elogios. A vida como um carnaval passando pelo labirinto, dentro ou avessa a certas normas. Ficção e realidade, indagações sobre a existência. “Ao delito de deixar o dito pelo não dito” é o pensamento vivo de Leminski que conspira por aqui. Mas será que é mesmo assim?” Essa é a pergunta final de Fróes. Cabe a quem ler o livro até o final respondê-la. Ou não.
Mesmo com certas dúvidas na cabeça e pensando que talvez fosse encontrar trechos ou páginas inteiramente confusos, achei o início interessante. Porém, poucas páginas depois, fiquei com vontade de abandonar o livro. Não abandonei, mas interrompi a leitura e fui ver o que o respeitado tradutor e ensaísta Boris Schnaiderman, que escreveu o posfácio desta publicação, jogava alguma luz sobre o texto de Leminski. Quem leu a edição da Brasiliense não teve acesso ao posfácio “Em Torno de Um Romance Enjeitado”, que foi publicado no mesmo ano da morte de Leminski (1989), porém depois dela. Mas que pode ser facilmente encontrado na rede. Ah, quem enjeitou o livro foi o próprio Leminski, obviamente, já que ele foi o pai da criança. A rejeição, não sei de que proporção, veio de parte da crítica e dos leitores.
Schnaiderman inicia seu texto lamentando a morte do autor e fazendo sua louvação: “Paulo Leminski era a própria exuberância, o transbordamento, o impulso vital, o sem-medida, o incontido, a anti-repressão. Agora, vêm os balanços nos jornais, com os indefectíveis “no entanto”, “por outro lado”, “pensando bem”. Ainda no dia de sua morte, um "correspondente especial” em Curitiba não achou nada melhor a dizer do que afirmar que o Catatau era uma cópia do Ulysses de Joyce.” Bem, Catatau, lançado em 1975, é tido por muitos como uma das obras-primas da literatura nacional de invenção do século passado, mas não por todos, daí a queixa de Schnaiderman. E esses poucos, ainda segundo ele, também pensariam que Agora é Que São Elas marcaria a decadência literária de Leminski.
Daí, em defesa dele e de sua obra, Schnaiderman vai transcrevendo e explicando diversos trechos do livro (são várias páginas que usa para isso, onze, para ser exato), chegando a reconhecer que tinha de parar logo com isso porque senão “[...] acabaria transcrevendo o livro todo. Em sua aparência de brincadeira inconseqüente, em sua leveza de toque, na realidade ele aborda alguns dos temas essenciais de nosso tempo.” Um deles seria sobre o que Leminski imaginava a morte do conto e do romance tradicionais, ao mesmo tempo em que teria percebido no mundo, Schnaiderman prossegue, “[...] uma nova narratividade, ligada aos novos meios de expressão. Em vez de se deixar sufocar por eles, a palavra encontra caminhos para se afirmar.”
Com essa esperança, que seria não apenas de Leminski, Schnaiderman encerra o posfácio afirmando que é, com esse pensamento, que ele vê Agora é Que São Elas, um “[...] objeto fascinante e perturbador e que adquire nova dimensão quando penso no amigo morto e na sua trajetória.” Tudo muito bom, tudo muito bem, mas como fica o leitor diante desse suprarromance? Que nos anos 1980 foi lançado pela Brasiliense como “Ficção, re-ficção, uma história que desvenda o processo de todas as histórias, AGORA É QUE SÃO ELAS, uma novela com começo, meio e fim (não necessariamente nessa ordem, é claro). Um romance pra tocar no rádio.” Pois é, tocar no rádio naquela época, com todos os palavrões cabeludos que Leminski cunhou nessa história amalucada, isso não se deu nem nos melhores sonhos de seu editor, claro. Sonhar não paga imposto, não é?
Bem, você vai lendo e lá perto do final, algumas coisas podem passar a fazer sentido ou não, isso não importa tanto, porque a viagem chegou ao fim e isso é um conforto para o leitor. De todo modo, destaco duas ou três coisas que anotei durante a leitura porque achei que valia a pena citá-las aqui, no final desse comentário. A primeira é a cena do casamento do narrador com Norma Propp, filha de Vladimir Propp, o autor de Morfologia do Conto Maravilhoso -- autor e livro são reais. Um conto maravilhoso é justamente o oposto do que Leminski buscava, não? Sobre Norma ele escreve: “De normas, vocês sabem, o inferno está cheio.” Não apenas delas, de boas e más intenções também. Mas vamos lá, à cerimônia de casamento, à conhecida pergunta do celebrante:
“-- Se alguém tem alguma coisa a dizer contra esse casamento, fale agora ou cale-se para sempre.
“E todos realizaram aquele nosso mais fundo desejo infantil. Um gritou:
“-- Eu tenho, reverendo! Essa mulher é uma put@!
“-- Ela trepou com o noivo antes do casamento!
“-- Ela já é casada!
“-- Ela tem um amante!
“-- Ela cobra um absurdo pra chup@r um p@u!
“Foi com muita fleugma que virei a cabeça para olhar a massa dos fiéis, donde saíam aquelas vozes.
“Nisso, uma voz gritou:
“-- Esse cara é vi@do!
“-- A mãe dele está na zona!
“-- Vi ele de sacanagem com a menininha lá fora!
“-- Ele tem filho com tudo quanto é mulher!”
É isso aí. E mais aquilo. Considerei esses diálogos uma das melhores coisas que saíram da cabeça do Leminski para essa obra. Mas tem mesmo alguma coisa a ver com Italo Calvino ou Julio Cortázar? Tenho minhas dúvidas. Mas vamos para outro trecho interessante: “Dei o braço a Norma e descemos a escada com a elegância que uma pedra de gelo exige para voltar a ser água.” Bota elegância nisso, hein! E finalmente, o trecho referente a uma lembrança que o narrador conservava do pai de sua amada, o teórico russo: “O cheiro de éter e livros velhos que emanava do professor Propp, embora não tivesse éter no consultório e as lombadas das suas coleções de livros luzissem como uniformes de oficiais em dia de parada” Mas essas lombadas também podiam brilhar como objetos de prata recém-polidos, não? Ficava mais fácil de desentender tudo. Ou não?