Thales.Santos 31/01/2024
Enterremos o conceito de Estado Paralelo
São capítulos e mais capítulos na qual ela vem simplesmente jogando uma enxurrada de dados (muito úteis por sinal para pesquisas quantitativas ou de método misto) mas sem uma contextualização bem delimitada do que aquilo ali significa exatamente, as razões de ser assim etc
Especialmente o capítulo de violência, que ela tenta falar sobre segurança pública, é extremamente raso. Ela também usa um conceito que hoje, dentro do campo de pesquisa na segurança pública, é extremamente datado e incorreto, que é o famigerado "poder paralelo". O poder paralelo, muito atrelado ao sentido de Estado paralelo (que se forma a partir de uma suposta "ausência" do Estado"), normalmente usado para se referir a organizações criminosas que existem a parte das instituições e administração estatal. Portanto, teriam leis paralelas, isto é, leis próprias que vão reger aquele universo social e, também, que seriam responsáveis pela regulamentação daquela organização.
Pensando na matemática, entre duas retas paralelas se não há encontro entre elas. Quando analisamos facções ligadas ao tráfico, milícia e jogo do bicho (pelo menos as organizações mais famosas no Brasil) vemos que na verdade a sua relação com o Estado é de dependência ou mesmo de domínio. Os bicheiros durante muito tempo utilizavam PM's para realizarem sua segurança pessoal e Castor de Andrade (como descobriu um pesquisador que escreveu uma dissertação sobre o jogo do bicho), tinha em seus livros de contabilidade pagamentos semanais a dezenas de polícias civis e militares, juízes etc. A coisa ia tão longe que ele mesmo financiava reformas de delegacias e batalhões, uma forma de agradar e também de manter aqueles policiais em suas mãos, garantindo tranquilamente o funcionamento de seus negócios. Com a morte do capo e a consequente desestabilização de seu império resultado da intensa guerra entre Rogério de Andrade e Fernando Iggnácio, respectivamente o sobrinho e genro do Castor, os próprios policiais militares eram contratados pelos dois para realizar ataques contra o outro. Não coincidentemente, muitos PM's foram assassinados nessa época pelas mãos dos seus próprios colegas. E isso tudo aconteceu ainda nos anos 2000, não estou falando de 1980 e demais épocas de disputa sangrenta entre os bicheiros que os obrigaram a sentar numa mesa e dividir o território fluminense entre eles pois aquela situação era insustentável para a continuação dos negócios...
Já as facções, pelo menos as duas mais famosas e relevantes (PCC e CV) nasceram dentro das prisões e possuem uma relação de atritos, mas também de proximidade com a polícia. Afinal, o que seria o arrego? Se com os bicheiros os policiais estão numa posição de serviçais, com os traficantes eles impõe um tipo de dominação que é a extorsão. Ou seja, fundamentalmente, o arrego parte de uma premissa de assimetria de forças, o que obriga aos traficantes a pagarem constantemente arregos aos policiais para que a venda de drogas continue. Caso contrário, e temos diversos casos que comprovam isso, aquela localidade irá sofrer com consecutivas operações ou mesmo patrulhas que são verdadeiras escaramuças, tudo para sufocar os negócios e, assim, fazer uma pressão para que o pagamento seja confirmado.
Para se ter ideia, no RJ foi feito a operação Calabar, a maior investigação na história do estado envolvendo corrupção policial e descobriu-se que por mês, no período de dois anos (que foi o período que a investigação da operação foi realizada), os PM's do 7BPM faturaram cerca de 800 mil a 1 milhão de reais com propinas e arrego do tráfico.
A milícia é, entre outras coisas, o momento que os policiais percebem que se um bando de jovens sem a menor preparação militar e sem uma estrutura legal a qual se apoiar conseguiram dominar grande parte dos territórios do estado, eles então conseguiriam com ainda maior facilidade o mesmo feito. É a partir daí que eles deixam de subir o morro para extorquir e começam disputar com essas mesmas facções esses territórios, assumindo o controle da economia local ao construir um monopólio na distribuição de gás, água, gatonet e "proteção".
O motivo das milícias hoje controlam mais de 50% do território fluminense e expandiram seu poder e influência para diversos estados do Brasil, se dá pelo fato desses criminosos estarem escorados na legalidade estatal. No RJ temos várias delegacias especializadas em combate a facções criminosas. Em contraste, temos apenas uma especializada que atua mais diretamente contra milícias, que seria a DRACO (e ela existe a bastante tempo, ela não foi criada para combater milícia, mas só incorporou essa função). Já quando falamos da PM, se pegarmos as grandes operações feitas, grande parte é feita em área de facções, principalmente do CV. Inclusive, grande parte da expansão das milícias se deu graças a implementação das UPP's, que expulsava o CV daquela região, abrindo espaço para o controle da milícia. Trago mais a realidade fluminense por ser a região em que concentro minha pesquisa, portanto, a que tenho mais contato e propriedade para falar sobre. De qualquer forma, vemos com esses inúmeros exemplos como a milícia se apropria dos aparatos estatais para agir com impunidade.
Acho que a chave fundamental para entender a falsidade do "Estado paralelo" é a visão foucaltiana da gerência dos ilegalismos, uma visão que já cheguei a abordar em uma outra resenha que fiz por aqui. Foucault costumava dizer que somente uma ficção pode fazer crer que as leis são feitas para serem acatadas e a policia e os tribunais destinados a fazer com que elas sejam respeitadas. Ou seja, aquilo tido como "ilegal" (contrário a lei estabelecida) não é algo imperfeito ou muito menos um acidente, afinal, a legislação é criada para definir e delimitar espaços onde ela própria pode ser violada e desrespeitada. É dessa forma que o próprio Estado cria maneiras de gerir o ilegalismo em seu próprio território, conseguindo assim ter vantagens econômicas, políticas etc. Um exemplo claro disso é que se um branquinho loiro de olhos verdes tiver fumando maconha em Higienópolis, Leblon ou qualquer lugar nobre, dificilmente um PM vai pará-lo para esculachar. Ou mesmo, quando foi que vimos a polícia entrar em algum condomínio de luxo atirando com caveirão como fazem nas favelas?
Por isso também é incorreto atribuir que existam "leis paralelas". De fato, essas organizações criminosas possuem leis próprias, mas elas não estão separadas assim. Eu diria que são instâncias diferentes, que no momento em que se chocarem (a instância do crime e a do aparato jurídico estatal) vai prevalecer aquela que tiver mais enraizada naquele local. Como nos mostra Gabriel Feltran, quando um PM se encontra em região onde se tem a presença do PCC, aquele agente não vai mais agir seguindo a instância judicial estatal, mas sim a lei estabelecida pelo PCC. Ou seja, esses dois universos estão constantemente ligados, se chocando, criando atritos e conflitos entre si, mas também criando consenso para formas de ganhar também.
Por fim, nesse capítulo violência a única coisa que achei boa mesmo foi como ela vai desdobrar a questão indigena, fazendo uma contextualização histórica bem interessante. Mas de resto, é um livro que deixa muito a desejar. Os capítulos relacionado a gênero e raça são extremamente decepcionantes.