Biia Rozante | @atitudeliteraria 06/12/2019Uma leitura enriquecedora e incrível.Atual, verossímil, reflexivo e relevante, Arquivo das Crianças Perdidas é um relato, um diário, é o acompanhar de uma família por sua viagem de férias pelo nordeste e sudoeste americano, mas não é apena isso, aqui nos deparamos com pensamentos, situações e discussões mais complexas e necessárias. Uma história de muitas camadas capaz de te surpreender e chocar na mesma proporção.
Uma família que não é “padrão”, pai e filho, mãe e filha, que formam juntos uma nova família. Um casamento que está em crise, onde casal não consegue se reconhecer, opostos, pessoas que buscam por coisas diferentes, ainda que muito do trabalho de um, reflita no trabalho do outro, porém com olhares diferentes. A família está de férias, está saindo para uma viagem longa de carro, em busca do objeto de estudo e trabalho do pai – Os Apaches -, enquanto que a mãe que a pouco se deparou com o assunto imigração, está ainda buscando por seu objetivo nessa viagem, não que ela esteja perdida, ela apenas não refinou a sua busca. Algo que não será um problema, já que a crise imigratória está por todos os lados, sendo discutida incansavelmente no rádio, jornais e televisão.
“(...) Morar juntos tinha sido uma decisão precipitada — confusa, caótica, urgente e tão bela e real quanto a vida quando não se está pensando em suas consequências. Nós no tornamos uma tribo. Em seguida vieram as consequências. Conhecemos os parentes um dos outros, nos casamos, começamos a preencher declarações conjuntas de imposto de renda, nos tornamos uma família.”
Esse com certeza não é o tipo de livro que a gente resenhe e sim, aquele que precisa ser lido. Valeria Luiselli criou todo um cenário e o explorou com maestria, regando a trama com muitos detalhes, levando o autor para viajar com a família. Diversas vezes temos a sensação de estarmos sentados no banco de trás do carro, junto com os dois filhos do casal. Apesar de ser um enredo com muitas camadas, abordando a relação familiar, a relação do casal e os muitos pensamentos da personagem principal, que vive sim uma guerra interna, acabamos sendo guiados para a crise da fronteira que se torna o carro chefe da narrativa.
“(...) Sentimos o tempo de forma diferente. Ninguém conseguiu captar completamente o que está acontecendo ou dizer por que. Talvez seja apenas porque sentimos uma ausência de futuro, porque o presente se tornou por demais avassalador, de modo que o futuro se tornou inimaginável. E, sem futuro, o tempo parece apenas um acúmulo.”
É tudo muito real, cru, honesto, sensível, temos a narradora que olha de fora, que busca seu lugar de fala, que tenta compreender através de muitos questionamentos o que são essas crianças que atravessam o deserto sozinhas, fugindo da violência, da miséria, tentando encontrar seus pais e poder viver em paz com eles. Onde muitos acabam interrogados, presos, deportados e mortos. Alguém que se coloca no lugar do próximo, que tem empatia, que enxerga esses seres como mais do que meros números e estatísticas, que pensa em como seria se fosse com um dos seus filhos, se eles teriam a coragem, a força, a noção de como enfrentar todo aquele perigo. Tudo é muito palpável, no limite entre a realidade e ficção, para ser bem honesta é impossível dizer qual é qual. Acho que ambos se misturam e se confundem.
“Este país inteiro, disse o Papá, é um enorme cemitério, mas só algumas pessoas conseguem um túmulo decente, porque a maioria das vidas não importa. A maioria das vidas é apagada, perdida no redemoinho de lixo que chamamos de história, disse ele.”
Que leitura INCRÍVEL, enriquecedora, intrigante... São tantas as camadas, a carga emocional, histórica, politica, humana. As reflexões, os pensamentos que são absurdamente lúcidos, todo o enredo é tão poderoso, explorador, por vezes ousado e repleto de referencias que só tornam toda a construção narrativa ainda mais rica e envolvente.
”(...) Ele ergueu o copo, disse que Arizona, Novo México, Sonora, Chihuahua eram todos belos nomes, mas também nomes para designar um passado de injustiça, genocídio, êxodo, guerra e sangue. Disse que queria que nos lembrássemos desta terra como uma terra de resiliência e perdão, também como uma terra onde a terra e o céu não conheciam divisão.”
É o tipo de leitura que te tira da zona de conforto, que desconstrói padrões, sons, imagens, que cria comparações, que aponta, confunde, reorganiza, que chama a atenção para aquilo que por vezes fechamos os olhos, ou ignoramos. Que é poderoso naquilo que aborda e na mensagem que deixa.
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