Fabby 17/09/2021
Da mesma autora de Comer, Rezar e Amar (que li a muitos anos e lembro de ter gostado muito) vem agora Cidade das Garotas. O livro começa com uma carta que Ângela (uma jovem) escreve a Vivian (uma senhora) no ano de 2010. Essa é a terceira vez que elas se comunicam (a primeira quando Ângela se casou, a segunda quando seu pai morre e esta última, por ocasião da morte de sua mãe) e a jovem questiona Vivian sobre qual o papel desta na vida de seu pai. Vivian então começa a contar sua história, deixando claro que se trata, na realidade, de sua versão dos fatos.
"O que eu era do pai dela? Só ele poderia responder a pergunta. E como nunca optou por falar a respeito com a filha, não cabe a mim contar o que eu era dele. Posso, contudo, contar a Ângela o que ele era para mim."
Começamos o livro no verão de 1940, quando uma Vivian de 19 anos se muda para a cidade de Nova York, após ser expulsa da faculdade por ter sido a segunda pior aluna do primeiro ano tendo reprovado em absolutamente TODAS as provas (a única pior que ela foi uma aluna que contraíra pólio e não frequentava as aulas) e, seus pais, não vendo correção para as atitudes da filha (digamos que ela era bem rebelde para a época em que vivia e se mantivesse absurdamente ocupada no horário de aulas, embora nem ela mesma soubesse com o quê kkkkk) resolvem mandar a jovem morar com sua tia, Peg, também de comportamento considerado subversivo, dona de um teatro. Na bagagem Vivian leva sonhos, expectativas e uma máquina de costura, seu maior talento e verdadeira paixão. Vivian chega para morar no teatro, na companhia de dançarinas, artistas e Olive, secretaria de sua tia, uma senhora distinta e rigorosa, amiga de Peg de longa data.
Temos uma personagem narradora forte, livre, desapegada de relacionamentos e totalmente fora dos padrões que me ensinaram a visualizar quando ouço falar em anos 40, 50. Ela bebe, fuma, transa com quem quer, na hora que deseja, divide a cama com uma amiga com quem não tem relações mas por quem nutre uma adoração e um amor únicos. O que vemos constantemente na convivência de Vivian, sua tia e todas as garotas da companhia de teatro, é sororidade pura... União, amizade, cumplicidade, são constantes no enredo.
Mas, assim como na vida real, as coisas não seguem um rumo de felicidade constante e nossa protagonista, num rompante de ciúmes, insegurança, bebidas e passionalidade, em um conjunto de atitudes impensadas, tem uma noite de loucura com sua amiga Célia e o marido de uma pessoa que ela admira muito... E isso, amigos, muda os rumos da nossa história e nos deparamos com uma Vivian arrependida, sofrida e triste..e sua vida tem um retrocesso...
"No último dia e meio, estivera bêbada e ferrada e assustada, fora aviltada e abandonada e repreendida. (...) Tinha sido exposta, entalhada e totalmente perseguida. (...) Não havia muito que Walter pudesse dizer para aumentar minha vergonha e me ferir ainda mais."
O livro é todo narrado por Vivian, direcionada a Ângela e a autora, em momentos estratégicos, deixa isso claro.. isso é importante pq a leitura nos leva a um processo de envolvimento e imersão onde por vezes esquecemos da intenção original da história (contar a Ângela sobre o que seu pai era na vida de Vivian). A autora retrata a forma como a Segunda Guerra Mundial afetou Nova York e seus moradores com maestria e sem exageros de narrativa. Em nenhum momento temos cenas viscerais mas sim sempre cheias de sentimentos e emoções, o que torna a leitura um pouco mais influenciadora em níveis emocionais.
É uma história de descobertas, de amizade mas de perdas e dor tbm...a Guerra nunca é bonita e sempre muito onerosa para todos os envolvidos, direta ou indiretamente e isso é percebido no decorrer da leitura. A maior parte do livro conta da vida de Vivian mas perto do final (mais um detalhe primoroso da escrita pois essa mudança coincide com a proximidade do final da guerra) damos um salto no tempo para encontrar nossa protagonista 20 anos depois...
"Tudo fica diferente depois que uma guerra termina. Já vi isso antes. Se tivermos bom senso, estaremos todos preparados para fazer ajustes. (...) A Nova York pós-guerra era um animal esplêndido, faminto, impaciente e crescente."
A história toda foge de uma regra que eu imaginei ao pensar em como seria a vida nas décadas de 40 e 50 com relação a comportamentos e posicionamentos da sociedade no que diz respeito as mulheres, em especial às independentes.... E isso foi uma experiência incrível de leitura, as surpresas me atingindo a cada capítulo.
"Com o máximo de orgulho, consegui observar todas as agitações e transformações dos anos 60 e saber o seguinte: Minha gente chegou lá primeiro."
O livro se torna uma constante lição de vida, especialmente quanto a julgamentos e preconceitos sobre comportamentos das pessoas com quem convivemos e em como isso não muda o caráter delas.... Confesso que chorei em alguns momentos. Chorei por Vivian mas principalmente por identificar na história dela fatos que podem ter acontecido com qualquer de nossas antepassadas e que nunca puderam ser contadas... Chorei pq nem nos meus piores dias eu sequer cheguei perto de imaginar viver e superar coisas a que cada uma delas sobreviveu... Chorei por me imaginar forte quando na verdade elas eram fortalezas indestrutíveis...
"O mundo não é plano. Você cresce achando que as coisas são de certa maneira. Acha que existem regras. Que as coisas têm que ser de um jeito. E você tenta viver em linha reta. Mas o mundo não liga para as suas regras ou as suas crenças. O mundo não é plano, Vivian. Nunca vai ser. Nossas regras não significam nada. O mundo simplesmente acontece com você de vez em quando, é isso que eu acho. E as pessoas têm que seguir por ele da melhor forma possível.”
Eu tinha lido Comer, Rezar, Amar a muitos anos atrás mas confesso que não lembrava da escrita de Elizabeth Gilbert ser tão envolvente então acho que posso afirmar que, para meu gosto e da forma como me atingiu, essa leitura mostra nosso amadurecimento... Dela enquanto criadora e de mim enquanto expectadora. Junto com algumas poucas obras esse se torna um livro de cabeceira para mim, algo que sempre vou ter vontade de reler.
A edição da Companhia das Letras mais uma vez não decepciona e apresenta um livro de qualidade inquestionável, com uma revisão perfeita, sem erros... A austeridade da diagramação condiz com o assunto abordado e isso mostra a eficiência dos envolvidos.
"Às vezes, levamos muito tempo para entender as coisas."
E quanto ao pai de Ângela???? Ah, isso fica pra vcs descobrirem pq vale a pena desbravar cada página para chegar a esse momento!