Fabio Pedreira 16/08/2019A Gangue dos Sonhos "Você sabe o que é o amor? - disse a ele - É conseguir ver aquilo que ninguém mais pode ver. E é deixar ver aquilo que você não ia querer deixar mais ninguém ver."
Boa noite, Nova York (sinopse)
Nova York. Nos tumultuados anos 1920, a cidade é, para milhares de europeus, a epítome do “sonho americano”. E não é diferente para Cetta Luminita, uma italiana que, apesar de muito jovem, busca um lugar ao sol com seu filho Christmas. Numa metrópole em plena explosão, onde o rádio está nascendo e o cinema começa a falar, o menino terá que crescer entre gangues rivais, em um ambiente de violência e pobreza, tendo sua imaginação e sua coragem como únicas armas para sobreviver. A esperança de uma nova vida nasce quando ele encontra a jovem Ruth, uma judia bela e rica.
Uma história vertiginosa e luminosa, magistralmente escrita, uma reflexão sobre a violência cometida contra as mulheres, sobre o racismo e a incomunicabilidade social, um romance sobre a infância roubada. A gangue dos sonhos queima com um ardor violento e redentor, transportando o leitor para um mundo onde todos lutam para preservar sua integridade.
Eu vou ser americano
Cetta Luminita é uma garotinha italiana de 12 anos, que a cada dia que passa nota-se como está ficando mais bonita. Sua mãe já notou isso e ela não foi a única, o patrão também todo dia faz questão de passar buzinando com seu carro na porta para ver Cetta na janela acenando com a mão.
A mãe da garota teme que a filha acabe tendo um bastardo do patrão, decidindo então passar uma corda pelas perna e costas da menina, fazendo com que ela passe a andar curvada e manca. O método parece funcionar e o patrão logo perde o interesse, porém, com o passar do tempo, Cetta acaba sendo violentada por um amigo do patrão, que certo dia visitava, junto com a sua família, as terras onde Cetta trabalhava e o que a mãe da menina tanto temia acabou acontecendo, a garotinha acaba dando à luz a um bastardo (lembrando que isso tudo é ainda no prólogo, não tem spoilers).
Com isso a garota acaba decidindo ir para os Estados Unidos, tentar viver o famoso sonho americano. Lá, sem saber falar nada de inglês e sem dinheiro, ela e seu pequeno filho, ainda bebê (chamado Christmas), acabam tendo o mesmo destino de milhares de imigrantes: uma vida marginalizada, sem futuro. Só resta a Cetta, então, se prostituir para conseguir viver.
O livro vai nos mostrar um pouco da batalha de Cetta para sobreviver a uma Nova York dos anos 20, rodeada por gângsteres, e que a diferença entre as classes sociais eram muito maiores. Vamos notar como Cetta, apesar da vida dura que leva, tem como principal motivação o seu filho. É ele quem faz com que ela siga em frente, pensando sempre no garotinho como seu porto seguro. Tudo de que Cetta mais deseja é que ele possa ter uma vida boa e seja um “americano”, ou seja, alguém que venceu na vida.
Os capítulos alternam entre esses momentos de Cetta e outros com Christmas ainda criança, porém, mais velho. Christmas é na minha opinião a alma do livro, o garoto a todo momento passa para o leitor uma mistura de marra, diversão, inteligência e outros mixes de emoções que logo no primeiro capítulo com ele você já está inteiramente encantado(a) com o rapaz.
Christmas acaba criando sua própria gangue, formada por nada mais, nada menos que duas pessoas, ele e Santo, um menino sarnento amigo dele. Com suas histórias, um pouco de sorte e muita cara de pau, mas um bom coração, sua “gangue” de dois, os Diamond Dogs, acaba ganhando muito mais notoriedade do que era de se imaginar.
E tudo melhora/piora quando Christmas e Santo encontram a jovem Ruth, uma garota rica e judia que foi violentada. A conexão entre Christmas e Ruth é notável, a química entre os dois se constrói de forma natural e ao mesmo tempo de repente. Mais tarde como forma de agradecimento ele ganha um rádio de presente, então, decide, irá trabalhar com rádio, naqueles programas que falam.
Esse, caros leitores, que até aqui chegaram, é o plot principal de um dos melhores livros que eu já li na minha vida. Daqueles livros que não importa quanto você escreva sobre, a sensação é de que você não vai conseguir nunca passar tudo que ele representou. Quando falei sobre o mix de emoções que o livro passa não estava brincando.
Muitas vezes eu ri alto com esse livro, fiquei indignado e apreensivo com o rumo de algumas coisas, para depois ficar aliviado sabendo que estava enganado; fiquei apreensivo, esperando coisas ruins acontecerem em certas partes, e muitas outras coisas, mas se tem uma sensação que se sobressai antes, durante e depois da leitura essa sensação é a de esperança. Tanto Cetta quanto Christmas são símbolos da esperança. Mesmo que às vezes o livro nos faça notar que ela pode falhar ou adormecer e que, se você não tiver cuidado, pode te levar para caminhos tortuosos, ele te mostra que a esperança pode te mandar também para lugares incríveis.
O amor entre Ruth e Christmas também é algo muito delicado. Devido a tudo que Ruth passou, e por ter pais que são praticamente o mesmo que nada, ela se vê em um mundo fechado e sem esperança. O único que lhe devolve essa alegria é Christmas, pelo menos até algo acontecer…
Tudo que eu posso dizer para vocês é “leiam!”. Não liguem para as quase 600 páginas do livro, não digo isso por nada, mas acreditem, quando você pega para ler você não para, devora tudo de uma vez. Mas, faço um aviso, coisa que por sinal você já deve ter notado durante a resenha. Cuidado pois esse livro contém gatilhos, principalmente em relação a questão do estupro e da violência.
Mas eu espero muito que vocês possam ler, porque ele trata de assuntos fortes, mas também trata de coisas bonitas. Ele machuca, mas ele também fere. Ele dá raiva, mas também diverte. Ele é feito para todos os leitores.
Frases dos Diamond Dogs (quotes)
"Se um dia você fizer mal a uma mulher, não vai nunca mais ser meu filho. Eu corto seu passarinho com minhas próprias mãos e depois te esgano. E se já estiver morta, volto do Além para transformar sua vida num pesadelo sem fim."
"Tonia pegou a mão de Cetta. Com a outra apertava a foto do filho. - Sal não imaginava que eu sei que foi ele quem dirigiu o carro - falou baixinho. - E nem o Vito sabe. Só eu sei. E agora você também. Mas guarde para você. É isso que nós mulheres, somos capazes de fazer. Guardar para gente as coisas que importam."
"- Desculpa, senhor - disse um dos meninos, assustado com o olhar. Tinha por volta de quatro anos a menos que Christmas. Mas Christmas não parecia mais um menino. Tinha virado um homem, repentinamente. As coisas não eram como tinha imaginado. E o que tinha feito crescer tão rápido, que tinha arrancado da adolescência, era o amor. O amor era uma coisa que queimava, que consumia, que deixava as pessoas bonitas mas também feias. O amor mudava as pessoas, não era conto de fadas. A vida não era um conto de fadas. "
"O apartamento era miserável, como tantos que Christmas tinha visto no Lower East Side. O cheiro de alho era substituído por especiarias picantes e carne defumada; no lugar das imagens de Nossa Senhora e do Santo Protetor, havia símbolos judaicos, um pequeno candelabro de latão com sete braços, uma estrela de Davi. Cheiros diferentes, imagens diferentes. Nada de novo. E até a mãe de Joey era uma mulher em tudo semelhante àquelas que Christmas conhecia bem: um rosto resignado, as pantufas de feltro arrastando no chão, como se não lhe restasse no corpo nem a vontade de dobrar os joelhos, ou como se tivesse medo de se desprender do chão e perceber - no voo - que não tinha um sonho para sonhar."
"Mãe... - disse baixinho, depois de muitos minutos.
- Sim?
- Quando a gente vira adulto, vê tudo sujo?
Cetta não respondeu. Olhava para o vazio. Havia perguntas que não era preciso responder. Porque a resposta era tão feia quanto a pergunta. Então puxou para si o filho de 15 anos, apertou-o em seus braços e começou a acariciar-lhe os cabelos com ternura.
Christmas teve o impulso de se afastar, mas depois se abandonou nos braços da mãe. Porque sabia que aqueles eram seus últimos carinhos de criança. Em silêncio. Porque não havia mais nada a dizer."
"[...] O acaso é um chute na bunda que a vida lhe dá para você dar um passo adiante. O acaso, no mundo dos adultos, é uma possibilidade que não deve ser desperdiçada. "
"Christmas deu um passo à frente, incerto, destacando-se da multidão, quando já era tarde, quando não podiam mais dizer nada um ao outro. Mas os olhos dos dois estavam enlaçados. E naqueles olhares turvados pelas lágrimas houve mais palavras do que conseguiriam dizer, mais verdades do que conseguiriam admitir, mais amor do que conseguiriam demonstrar. E havia mais dor do que seriam capazes de suportar."
"E Christmas não esperava resposta. Porque talvez não a ouvisse. Porque tinha os olhos fixos nos dela. Porque não se lembrava deles tão verdes. Porque não havia mais nem perguntas nem explicações. Porque tudo aquilo que tinha havido antes, o passado e os pensamentos e as preocupações, era como o desenho de uma criança na praia, apagado num instante pelo impetuoso presente das ondas do oceano. E eles eram aquele oceano. Sem fim e sem início."