Alê | @alexandrejjr 13/03/2022
Menina, mulher e de pele preta
Não existem limites para a construção de um conto. Os escritores que se aventuram nesse terreno precisam apenas ter uma ideia - que pode ou não fazer sentido - que se concretize através da linguagem, matéria-prima de quem escreve. No caso deste “Redemoinho em dia quente”, há muito mais que isso.
Primeiro livro de contos da cearense Jarid Arraes, “Redemoinho em dia quente” é um apanhado de 30 narrativas breves - breves mesmo, pois nenhuma delas tem mais que 10 páginas - que tangenciam todas as discussões contemporâneas possíveis sobre o universo feminino. E eis aqui a primeira característica que distingue este livro da maioria de seus pares: não existem contos narrados por homens. E a narração abrange de tudo: meninas, mulheres, beatas, transsexuais, idosas. À Jarid, nada da realidade feminina escapa.
Agora, a façanha: Jarid, uma jovem autora nordestina de 31 anos, conhecida pela publicação de mais de 70 títulos de cordéis e livros de poesias, algo extremamente restrito ao Nordeste, consegue popularizar, do Norte ao Sul do país, uma literatura engajada, denunciatória e extremamente política sem ser panfletária. Caso raro de um Brasil que sofre com a ignorância e a intolerância latentes. É através de contos poderosos com meninas e mulheres protagonistas de realidades muito particulares que a voz narrativa de Jarid, carregada de regionalidade, oferece reflexões universais. A união perfeita da boa literatura, portanto.
E os contos? Bom, os contos trabalham essencialmente com o extrato real da vida feminina, mas permitem a dose necessária de irrealidade inerente à ficção. É o caso de “Sacola”, que abre o livro de maneira bem-humorada e envolve uma beata que usa as drogas de um traficante por acaso e curiosidade. Há também doses importantes de seriedade sobre os mais variados temas, como a discussão sobre colorismo e preconceito na infância em “Marrom-escuro, marrom-claro”; o pesado e sinuoso “Telhado quebrado com gente morando dentro”, que aborda estupro e assédio sexual e “Gesso”, que evidencia o alarmante quadro de violência doméstica que o Brasil patriarcal insiste em ignorar; há também uma reflexão sincera sobre o mal deste século, a depressão, em “Got a flamin’ heart, can’t get my fill’’; ou ainda a sempre polêmica questão da sexualidade, cada vez mais relevante, que ganha holofote nos urgentes “Gilete para peito”, “Voz” e “Olhos de cacimba”, contos que falam sobre bissexualidade, transsexualidade e homossexualidade, respectivamente. Em meio a tanta diversidade, Jarid ainda consegue encaixar o fantástico - característica cara aos clássicos do gênero - no cotidiano da região do Cariri. É o caso de “Os fatos dos gatos” e “Como é ruim cair num buraco”, exemplos mais fiéis à sensação de sonho ou de inesperado que os leitores sempre podem esperar quando leem este gênero.
Mas e por que o livro não é perfeito, então? Basicamente, por duas razões simples e muito particulares deste leitor: há contos sobrando de qualidade inferior aos melhores momentos do livro e, além disso, a opção pela sufocante e limitante escolha da primeira pessoa na maioria dos textos da coletânea me desagrada. Como recente entusiasta do gênero, sinto que o distanciamento entre quem narra e o que é narrado contribui de maneira significativa para o efeito de uma (boa) história que se propõe curta. Talvez se o livro tivesse metade dos contos, com uma seleção ainda mais criteriosa, “Redemoinho em dia quente” representaria para a minha geração o que “Antes do baile verde” representa para a geração de 70 e para a literatura brasileira. Infelizmente, não foi esse o caso.
O fato de “Redemoinho em dia quente” estar sendo reimpresso constantemente desde seu lançamento evidencia que os leitores brasileiros sentiam falta de representação. Talvez uma representação que muitos nem soubessem que precisavam. Afinal, Jarid Arraes, menina, mulher e de pele preta, é o Brasil real que tenta ser silenciado desde os tempos de Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, mas que se nega a tal posto. E não é disso, vozes insurgentes em tempos sombrios, que precisamos?