LucasMiguel 18/09/2023
A morte e o gozo
La petite mort: expressão francesa que designa o instante seguinte ao orgasmo; aquele momento de extremo relaxamento após o ápice. A pequena morte.
A relação entre sexo e morte é antiga. Há, talvez, um elemento impregnado em todas os “homo sapiens sapiens” – aqueles que não somente sabem, mas sabem saber – acerca dos limites da existência: sabemos, sem que ninguém nos tenha ensinado, e mesmo preferindo não pensar no assunto ou nos afundarmos em esperanças religiosas, o princípio e o fim da existência. Sabemos, e somos assombrados e fascinados pelas fronteiras deste território que cerca o breve lampejo do nada anterior e do nada posterior. Seria esta, a tão buscada e discutida “natureza humana”. Seria só isto o homem?
O instante magnânimo e misterioso que antecede a morte provavelmente é o espelhamento do orgasmo e, por vezes e inconscientemente, somos atraídos pela morte por sabermos, no fundo, que antes de existirmos, não havia angústia, e o retorno a não existência, asséptica de sofrimento, só é possível na inexistência após a vida.
Sexo e morte. Sofrimento e redenção. Luz e sombra. Humanos, demasiado conflitantes. Eros e Tânatos.
A obra de Philip Roth trata, de forma brilhante e depravada, da humanidade em sua forma mais patética, ou seja, melancólica e humilhante, para se utilizar dos dois significados possíveis da palavra.
Mickey Sabbath é um judeu americano, artista de rua, que possui compulsão sexual que o levará à ruína, não sem antes arrastar todas as pessoas ao seu redor para o fundo negro e sem fundo de suas neuroses.
Talvez porque seu inconsciente assim determinasse, talvez porque a história exigisse uma metáfora, o manipulador Sabbath é um profissional dos fantoches, sendo certo que ninguém a sua volta ficará a salvo de seus dedos de titereiro. Nem mesmo o narrador que, não obstante seja impessoal, acaba sendo contaminado pelo personagem que por vezes “invade” a narração e engravida a voz onisciente de terceira pessoa com a asquerosa e devassa voz de Sabbath.
Mas o sexo não é a única obsessão do personagem: a morte corre em paralelo por todo o livro. Aliás, a morte em seus meandros mais cruéis: a morte da potência sexual, a morte dos afetos, a morte da saúde...e é precisamente por isso que o instrumento do titereiro, os dedos, estão em franco declínio pela ação do tempo e da artrite, assim como seu poder de manipulação, que padece de sofrida e patética ação do perverso Cronos.
Tal se apresenta na triste e cômica cena em que Sabbath tenta manipular Rosa, empregada doméstica, para que esta lhe preste agrados sexuais, cujo resultado atinge a apoteose do ridículo.
O teatro, notadamente de Shakespeare, é outro espectro que permeia toda a obra por ser o espelhamento da vida, e Sabbath se posta como diretor de uma tragédia cheia de som e fúria que é a sua vida, cuja catarse é sempre um gozo impuro e sádico.
Obras como A tempestade e sua reflexão sobre o “fim”, e Hamlet com seu dilema sobre o suicídio e a cena do cemitério reencenada, são obras cuidadosamente mimetizadas pelo romance.
Espectros, como o pai de Hamlet, também são personagens importantes da obra: o fantasma da mãe que aparece para assombrar as depravações do filho; o fantasma do irmão, morto na guerra e possível gatilho dos traumas; e as neuroses, verdadeiros espíritos malignos que assombram e instigam o idoso titereiro a dar cabo desta vida cujas decisões entre ser ou não ser se mostram cruelmente irremediáveis.
O alvo principal das manipulações de Mickey Sabbath são as mulheres, das quais opta pelas mais frágeis e instáveis, em sua maioria imigrantes: Rosa, Deborah, Michelle, Drenka, Roseanna, Nikki, Kathy...todas vítimas do Teatro de Sabbath.
“Manipular” talvez seja uma tentativa de ordenar o caos: imaginar a existência como uma sucessão de acasos imponderáveis, e imaginar o sofrimento como carente de qualquer reembolso ou sentido pode ser tão aniquilador quanto lutar contra nazistas a bordo de um b-25.
Criar um teatro para si mesmo, cujas ações possuem encadeamentos pré-imaginadas e sempre prenhes de sentido, pode se mostrar um acalento para uma mente narcísica que pouco se importa com o sofrimento de seus “atores” e “atrizes”.
Correndo o risco de ser acusado de estar sendo manipulado pelo personagem, a verdade é que tais manipulações poderiam ser justificadas frente ao grande Teatro da sociedade americana, afinal, Hellen, ao buscar defender Sabbath no tribunal, foi escancaradamente manipulada para que o personagem rebelde da grande comédia da vida fosse condenado por importunação sexual.
A vida em sociedade também cria suas regras e suas leis para imaginar haver ordem num mundo cuja Vontade desordenada e subterrânea opera inexoravelmente os destinos dos personagens que são, em essência, pulsões embaladas em ternos, vestidos e contratos com firma reconhecida.
Por fim, a solidão também assume um posto cativo na história. Não raras são as vezes em que a maldição da árvore do Conhecimento pesa sobre nossas cabeças e nos sentimos sós. Morremos sós da mesma forma que sempre vivemos sós. Temos apenas testemunhas próximas de nossa miséria e é talvez por isso que Sabbath e Drenka, sempre livres sexualmente, tenham sucumbido à tentação da monogamia e do ciúme ao encararem os frios e convidativos olhos da morte.