Li 02/03/2019
A infância e suas pequenas mutilações
Olho de gato, de Margaret Atwood, é um livro de memórias. A pintora Elaine Risley volta à cidade natal, Toronto, no Canadá, para promover uma exposição que reúne suas grandes obras e se depara com todas as suas referências.
Elaine revisita as amigas da infância, em especial, Cordélia, uma representação daquilo que uma garota admira e odeia, com uma postura impositiva e, ao mesmo tempo, maternal. Cordélia prende a amiga em um enredo de punições necessárias e falso compromisso com seu crescimento pessoal.
Cordélia é sádica. Elaine é masoquista. Mas é provável que ambas já tenham marcas da infância, da família, as quais resvalam para fora, as quais ditam suas ações e que aprisionam suas escolhas.
A verdade é que ninguém está livre dessas marcas. Seja a negligência dos pais, seja seu excesso de zelo, seja sua crueldade, ou falta dela, cada ação, fala e situação vai sulcando a alma de modo que alguns riscos vão ficando profundos, ao ponto de se transformar em cabresto.
Elaine tem comportamentos estranhos em vários momentos. Ela se mutila, coisa pouca, só uns arrancões nas carnes dos pés até sangrarem, os quais dificultam o andar. Em uns, pode ser o hábito de roer as unhas até sangrar. Em outros, o cabelo arrancado aos poucos. Existem aqueles mais elaborados que usam objetos como lâminas de barbear. E há, ainda, os que preferem irritar o estômago com coisas indigestas e estranhas como sabonetes, sabão em pó ou borra de café.
As lembranças felizes de Elaine se mesclam com essas tristes, mas, na verdade, é o leitor quem as considera deste modo, ela própria as vê como habituais, coisas que acontecem. É verdade que ela sabe que a amizade com Cordélia é insalubre, mas o que se pode fazer? Frequentam a mesma escola, moram na mesma vizinhança.
Será que as filhas de Elaine sofrem o mesmo tipo de peso que uma má amizade impõe? Elaine as observa e tenta saber se seria uma mãe que toma partido ou como a sua própria, apenas com um abraço impotente para oferecer.
Gosto de livros fortes como este, em que se entra vagarosamente num lago, uma calmaria inicial, e então, a história vai nos levando, crescendo, correndo, e quando vemos estamos nas corredeiras tentando descobrir como sair dali. Existem os refrescos, as indas e vindas do enredo, Elaine adulta e Elaine adolescente, assim fica suportável. Mas quantos de nós têm uma Cordélia que tenta afogar na memória?
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