FellipeFFCardoso 21/03/2024
Em algum momento do livro, o autor faz um manifesto subliminar sobre a fragmentação narrativa que marca a experiência de leitura deste livro: como garantir coesão, se a realidade é cindida? No entanto, tal manifesto só aparece depois de um terço do livro, quando o leitor de certa maneira já experimentou o deslocamento de rótulos que ele oferece: é um romance? são contos? poemas? textos acadêmicos? um diário?
No entanto, é logo no começo que o autor também delimita esse deslocamento para o próprio leitor que, eventualmente, construirá opiniões acerca dos temas apresentados, muitos deles já relegados à margem do juízo público: homossexualidade, sexo, dor, trauma, vergonha. Ele escreve: "cansei de transformar minha tristeza em lágrimas e, agora, ela sempre será arte. Porque a arte não me julga, não tenho que ter medo da arte, ela me entende, me aceita".
Ele assim o faz porque, já no terço final de sua jornada, o narrador afirma que: "as coisas parecem que vão dar certo, mas ao mesmo tempo desmoronam. É como se eu quisesse que tudo desmoronasse rápido demais, pois é ao desmoronamento que sei reagir. Corro atrás da felicidade, mas gozo com a tristeza". O livro é, portanto, uma materialização dos escombros de ser humano que ruiu depois de um abuso no início da adolescência e sobre o adulto que está soterrado.
Como escrever aquilo que se sente, mas que é inexprimível? Arosa parte do princípio de que ele não tem obrigação nenhuma com a coesão e nem com a forma, pois o narrador está levantando o material demolido para saber o que está vivo, o que ainda respira, o que ainda é passível de reconhecer como seu, o que não foi maculado pela memória da violência sofrida aos doze anos e da própria ideia de violação que ser gay significa para a normatividade da estrutural social.
Enquanto lia, sendo eu também um homem homossexual, fiquei pensando sobre a linguagem como meio sistemático para reforçar a identidade, quando a própria linguagem está imiscuída na normatividade que destitui aspectos identitários de indivíduos gays. Quando, por exemplo, o narrador fala sobre o masculino e o feminino na obra da escritora ucraniana Svetlana Aleksiévitch, que aspectos psíquicos e binários dariam conta da experiência de homens que são marginalizados e condenados, de acordo com os critérios normativos binários de expressão de gênero, justamente por refutarem a masculinidade normativa sem sequer poderem pertencer também à ideia de feminilidade?
Lembrei de dois franceses. O primeiro, Pierre Bourdieu, para quem a repropriação cultural de um indivíduo é feita com as mesmas ferramentas que, antes, o destituíram de sua cultura. O segundo, Michel Foucault, que analisou a sexualidade como dispositivo, isto é, forma de controle e coerção cuja pretensão é regular a relação com o prazer. Socialmente falando, a homossexualidade desloca o foco dos padrões preestabelecidos e, muitas vezes, usa o deslocamento como deturpação, estabelecendo, no corpo gay, o trauma e a vergonha como reafirmação de sua força, de seu poder e, logo, da submissão e da fragilidade do outro.
O abuso sofrido pelo narrador demonstra o sofrimento físico e psíquico que o acomete não apenas pela chaga do abuso em si, mas pela solidão, pelo medo, pela exposição ao perigo, pela falta de compreensão, por não ter fé pública. Ele usa o sexo como método de autoflagelação pela culpa de ser quem é. Contudo, ainda sobre a ótica da reapropriação cultural e social e da sexualidade como dispositivo de poder, é justamente pelo sexo, mesmo como ato mecanizado pela adição ao prazer, que ele busca a sua verdade, o conhecimento de si. O capítulo/conto "O celeiro" é talvez a parte mais complexa dessa desestrutura narrativa, algo que aproxima o narrador de uma linguagem menos masculina que, por outro lado, fica tão presente em seus diários.
A gordofobia e o etarismo que muitas vezes aparecem no texto são justificados pela aversão à figura do abusador, mas não deixam, ainda assim, de serem incômodos por reforçarem, como anverso, os padrões de desejo gay tão prejudiciais à própria construção saudável do prazer sexual compartilhado, que alçam a figura do homem com "tipo de homem" ao modelo a ser alcançado, já que daí se poderia negociar a noção de pertencimento, de aceitação e, quem sabe assim, pretensamente, não mais se sentir solitário, incompreendido, o que exclui, na própria gênese da exclusão já sofrida, a maior parte dos corpos.
O narrador chegará à essa conclusão? não no livro. Mas quem sabe nós, leitores, poderemos nos afastar dessas ciladas e pensar que somos, antes de qualquer coisa, o que somos e tudo o que vem depois é construção social, inclusive o desejo e aquilo pelo qual um se dispõe a aniquilar o seu ser por uma luxúria mecânica, transacional, como uma droga que alivia por alguns momentos os efeitos dos traumas, para depois continuar reclamando da falta de conexões autênticas e reais.