Nenhum Espelho Reflete Seu Rosto

Nenhum Espelho Reflete Seu Rosto Rosângela Vieira Rocha




Resenhas - Nenhum Espelho Reflete Seu Rosto


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Tiago 19/06/2019

Lapidando as pedras brutas da ficção
A literatura é uma arte anciã, e por mais que o seu cânone tenha se renovado e rejuvenescido, novidades que já não são tão novas assim (como a internet) ainda passam ao largo de certas narrativas, sendo associadas aos hábitos e à cultura das novas gerações sem alcançar uma representação mais fiel, que dê conta de sua onipresença no cotidiano das demais.

Não é o que ocorre em "Nenhum Espelho Reflete Seu Rosto", romance de Rosângela Vieira Rocha que não apenas se desenrola no âmbito virtual, como também é protagonizado por uma mulher de seus 40 anos que se relaciona com um homem mais velho — avaliando o impacto da ferramenta nos valores afetivos de uma geração diferente, educada ainda sob o estro do analógico.

Helen é dona de uma joalheria, herdou a arte de seu pai e é uma apaixonada pelo seu ofício. Sua rotina consiste em administrar sua pequena loja num shopping center e manter uma vida social discreta, em parte cultivada no Facebook, onde escreve postagens inteligentes, algumas de teor político. Uma delas, sobre as avós da Plaza de Mayo, de Buenos Aires, é comentada inbox pelo misterioso Ivan Hernández, um senhor que aos poucos se torna seu amigo virtual e logo um namorado à distância, a outra ponta de uma relação alimentada por contatos telefônicos diários e uma visita ao seu país, com promessas de desdobramentos.

A partir desta visita, Hernández vai se mostrando uma criatura abusiva, que começa a se aproveitar da sua influência sobre Helen para fins egoístas e escusos ao relacionamento. No início do livro, a relação já está terminada, e Helen vai relembrando dos seus episódios turbulentos depois de ser procurada por um psiquiatra que está tratando da nova “vítima” de Hernández — uma paciente que também foi seduzida pelo argentino e prejudicada pelos seus padrões de comportamento.

Em que pesem a fragilidade deste pontapé inicial (que talvez venha a colidir com alguns princípios éticos da psiquiatria) e do fato de os e-mails que Helen troca com Dr. Jorge pouco se diferenciarem, formalmente falando, da narração em primeira pessoa com a qual a autora intercala esta correspondência, Rosângela Vieira da Rocha consegue imprimir um ritmo ágil à narrativa, mostrando pleno domínio dessa estrutura paralela que escolheu para distribuir sua trama.

Próximo ao final do romance, há uma ligeira assimetria da qual a própria autora se dá conta: Helen faz um verdadeiro diagnóstico médico do caso, com longas ponderações sobre o caráter narcisístico de Ivan (o que ela mesma admite talvez não convir, dadas as qualificações superiores do Dr. Jorge — o seu interlocutor — para entender o perfil). O problema teria fácil resolução se este perfil fosse traçado pelo próprio Dr. Jorge, em resposta aos e-mails de Helen — traindo o pacto estabelecido entre os dois, mas conferindo um ganho substancial à narrativa.

Porque o grande mérito, aqui, parece ser mesmo o da pesquisa: Rosângela sabe do que fala quando analisa os meandros da personalidade de Ivan, e mais ainda quando descreve o ofício de Helen — estabelecendo um contraponto interessante entre a profissional que ganha a vida lapidando pedras preciosas e a mulher que, em certo momento, tem a ilusão de estar fazendo a mesma coisa com este homem (que rápido revela seu núcleo feito de um metal de pouco valor).

Como obra, “Nenhum Espelho Reflete Seu Rosto” revela também este minucioso trabalho de garimpar e lapidar as pedras brutas, mas raras, da ficção.

site: https://medium.com/@tiagogermano/lapidando-as-pedras-brutas-da-fic%C3%A7%C3%A3o-6a545eb6c0cf?source=---------2------------------
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Krishnamurti 25/06/2019

Amores e desastres amorosos mediados pelas redes sociais
Na bolinha de barro em que vivemos, cada vez mais conectada e midiatizada, a facilidade maior de conectar-se à outras pessoas enseja a que o indivíduo possa se relacionar mais facilmente, porém, sem um envolvimento emocional, sem a ideia de um compromisso, visto que, com apenas um clique, podemos facilmente rejeitar uma pessoa. Que beleza hem? Com apenas um piparote, adeus! As redes possibilitam algo que no ambiente real é um obstáculo porque já não possuímos fronteiras e as noções de espaço-tempo são dissolvidas, podemos inclusive nos comunicar com diferentes pessoas, em diferentes locais e até com fusos horários diferentes. Pulamos etapas e, com efeito, a tecnologia propicia uma relação ambígua. Ao mesmo tempo em que dissolve as fronteiras geográficas, ajudam a tornar as relações ainda mais frágeis. E pulamos para outro conceito que traduz muito bem os equívocos a que nos sujeitamos. Estar próximo de alguém não significa estar junto e sim estar online. Mas não é por conta das redes sociais, (não necessariamente), que as relações que poderiam atingir elevados padrões de amor, foram rebaixadas. O conjunto de experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito com o tempo. Noites avulsas de sexo hoje são referidas como “fazer amor”. Daí se conclui que, mais uma vez, a problemática não está propriamente no meio utilizado para a conexão mais sim no significado que a ela atribuímos.

O modelo de ‘amor’ hoje pula etapas e vamos cegamente para a busca de uma satisfação pessoal idealizada como diversão sem limites e consumo do outro tendo como grande preocupação aproveitar o momento presente sem preocupações com futuros. Está valendo o maior apreço por si mesmo e pelos próprios interesses, sem levar muito em conta as demandas do outro por atenção e cuidado. E paralelamente se incute nas mentes que compromisso amorosos implicam em diminuição de liberdade. Uma confusão terrível onde poucos se satisfazem em meio a uma baderna terrível de sentimentos. Numa tática do mínimo esforço, contatos amorosos são rapidamente estabelecidos assim como podem ser rompidos facilmente. Nessa facilidade toda podem ocorrer verdadeiros desastres amorosos.

“Nenhum espelho reflete seu rosto”, da escritora Rosângela Vieira Rocha, é um romance que aborda uma situação limite que foi gestada no Facebook. A Rede Social (talvez a mais utilizada em todo mundo), que permite e incentiva a amizade entre as pessoas. Helen é uma mulher de 40 anos, lutando desesperadamente para manter uma pequena joalheria que abrira depois que seus pais morreram num desastre de automóvel. Uma mulher guerreira e; solitária. O romance tem seu ponto de partida em um telefonema que Helen recebe de um psiquiatra, que tem em sua clínica uma paciente internada em um estado deplorável. Não quer comer, não fala com ninguém, não se submete a qualquer tratamento clínico e não há maneira de se saber como ou porque teria chegado a esse estado. Por informações prestadas pela filha da enferma, fica-se sabendo que Helen teria tido num passado mais recuado, um relacionamento amoroso com um certo Ivan Hernández, um sujeito argentino que teve mais recentemente, ligações afetivas com a doente. E então o médico procura e encontra Helen a lhe pedir ajuda no sentido de encontrar o paradeiro do tal sujeito que por sua vez poderia prestar algum auxílio no tratamento médico. Em casos tais é imprescindível saber do histórico do paciente.

A informação prestada ao médico realmente procede e a trama do romance se desenvolve numa alternância do foco narrativo entre o desenrolar da vida de Helen que segue no presente (tentando vencer as vicissitudes da vida e o trauma da relação que teve com Ivan), com as informações que vai prestando ao médico através de e-mails. Observe-se como a narrativa nos deixa perceber como tais casos começam. Depois de duas ou três semanas de contatos virtuais com o argentino, seguiram-se telefonemas, e: “logo passei a receber dois telefonemas diários de Buenos Aires. Um menos longo, geralmente pela manhã, e um à noite, já tarde. Chegamos a falar durante mais de três horas seguidas. Eu só dormia na alta madrugada, exausta. Ficava muito excitada com as conversas e demorava demais a conciliar o sono.” Vejam onde uma coisa assim vai levando, sobretudo porque, “Ivan adivinhava meus pensamentos e minhas necessidades. Seus pontos de vista sobre os fatos coincidiam com os meus de maneira tão precisa, tão exata, que esses telefonemas me provocavam uma sensação de magia, de encantamento, de (quase) hipnose.”

O que parecia a princípio um grande encontro de alma gêmea foi perdendo seu brilho logo na primeira viagem dela a Buenos Aires onde encontrou um homem de meia idade, sem horizontes, morando sozinho em um apartamento minúsculo, com várias relações anteriores que resultaram em três filhos e o pior, de um minuto para outro se comportava como outra pessoa. Já era tarde. Helen em meio à uma situação então sedutora demais, não se deu conta de raciocinar com clareza no rumo que estava dando à sua vida. Quando o ser se sente perdidamente apaixonado quantas vezes não ocorrem situações que infelizmente deixamos passar em brancas nuvens em nome da paz do amor que pensamos existir?

“Fazia seu teatrinho e logo em seguida me oferecia uma flor que encontrasse pelo caminho, uma xícara de café no bar mais próximo ou balas de violetas, que adoro. Eu ficava confusa diante dessa ambiguidade. A solução momentânea sempre vinha da sua pele macia, dos seus braços grossos, e eu seguia em frente, sem retrucar.
Passava por cima das grosserias por me parecerem absolutamente destoantes de tudo que ele me havia dito nas mensagens e telefonemas. Colocava-as numa espécie de arquivo mental denominado excentricidades ivanísticas. Para mim, não era o Ivan real, entende? O ser amoroso que foi meu confidente durante meses era o Ivan verdadeiro.”

Todavia, mesmo em seu sofrimento extremo ao rememorar tais fatos – porque Helen acreditava estar contribuindo de alguma forma para ajudar aquela mulher jogada numa clínica psiquiátrica -, e mesmo em uma luta terrível como é a de manter e fazer prosperar um negócio em um país de incertezas e safadezas contumazes como é o Brasil, continua tentando fornecer ao médico algum dado que pudesse ajudar. E ficamos sabendo de invenções de acidentes, estelionato de cartões de créditos, dinheiro dela pagando tudo, sumiços calculados, operações médicas de urgência forjadas, e uma série de golpes que ficavam sempre no limiar entre a pura e simples bandidagem e pequenas infrações éticas do tal portenho. Uma tragédia anunciada ocorrera com aquela mulher da clínica. Que fim terá a pobre coitada vítima do mesmo homem? Como Helen conseguirá recordar de tantas desgraças em sua vida sem voltar a se desestabilizar?

Vale a pena referir um questionamento que pode ocorrer ao leitor atento ao desenrolar da trama romanesca. Teria o ser humano que pauta sua vida em valores éticos, recursos ocultos como por exemplo um sonho fortuito em que vemos um rosto de mulher morena de olhos verdes e que no final das contas significa muito mais do que somente isso? Mistérios do imponderável que felizmente envolve nossas vidas... Ficamos com a pulga atrás da orelha. Pior do que o bandido(a) que simplesmente nos rouba os anéis, é aquele outro(a), que pretende levar-nos os dedos também, porque “tecem fio a fio, ponto por ponto, a rede pegajosa que nos foi lançada, trançando a malha da dependência afetiva contra a qual temos de lutar tanto”. Aí a maldade personificada. Não aquela que é fruto de um deslize de caráter ou do impulso momentâneo, mas outra, a que invade o território psíquico do outro, abala-lhe a confiança, o amor próprio, ataca a sanidade mental e, finalmente, destrói a autoestima de seu alvo. A tecnologia da internet facilita muito a atuação de perversos narcisistas. Esse o jogo de esconde-esconde que mostra apenas as facetas que representam e reforçam um prolongamento do que a outra pessoa é, e o que deseja ver. Daí a grande metáfora de que “nenhum espelho reflete o teu rosto”.

Mais um pequeno detalhe que não se pode deixar de referir: Há uma passagem no livro que ilustra muito bem o que ocorre na seara da vida e do amor, esse maravilhoso sentimento que nos faculta vida mais plena: “O meu mundo é o da joalheria, onde coisas mínimas podem destruir ou salvar uma joia. O universo das facetas, em que cada pedra pode ser vista de tantos ângulos diferentes, o que muda tudo. É a esfera do vir a ser, de cada pedra bruta encontrada e retirada das profundezas das minas, depois cortada no rebolo, em seguida lapidada, multifacetada, lustrada, e cravada em uma peça que por sua vez exigiu uma série de técnicas e de cuidados até estar pronta para receber o seu prêmio, o seu ornamento, a coroação que lhe dará a forma final e arrematará a sua beleza e a sua completude”. Queimar etapas em relações humanas nem sempre trazem resultados satisfatórios. Deve ser, também por isso, que há tanta gente comprando bijuterias por diamante azul. Disto nos fala o livro da senhora Rosângela Vieira Rocha.

Livro: “Nenhum espelho reflete seu rosto” – Romance de Rosângela Vieira Rocha – Arribaçã Editora, Cajazeiras - PB 2019, 268 p.
ISBN 978-85-906976-5-7
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Kyanja 25/07/2019

Nem tudo que reluz é ouro; nem tudo que é opaco não acaba por se revelar em sua plenitude quando lapidado
Existem histórias que somente uma mulher poderia escrever, com sua visão e vivência de mundo. Ao legitimar tais narrativas sob uma perspectiva feminina, faz com que ressoem de maneira muito mais poderosa junto a outras mulheres. Acredito que assim se configure o caso deste romance de Rosângela Vieira Rocha: “Nenhum Espelho Reflete seu Rosto”.

Helen é a narradora e protagonista de uma história de amor, assombro e horror, em que se enreda com o homem errado, mas que não sucumbe à loucura nem à depressão e tampouco à autodepreciação a que relacionamentos tóxicos podem induzir — o que não foi o caso de Veridiana, uma das mais recentes vítimas de Ivan, o perverso sedutor por quem ambas se apaixonam em diferentes épocas. O que as liga, além dessa paixão em comum, é o psicanalista desta última, que pede socorro à Helen a fim de retirar a paciente do estado quase vegetativo em que se encontra. Ele fica sabendo pela filha de Veridiana que a mãe teve um relacionamento com um argentino e que teria sido namorado de Helen. Assim, pede a ela que lhe dê pistas sobre quem é esse tal Ivan que teria deixado sua paciente tão mal, uma vez que não consegue arrancar nenhuma informação dela para poder auxiliá-la no processo terapêutico.

Sem tempo de se encontrar com o psicanalista, residente em outra cidade, e às vésperas de estrear uma importante coleção de joias— uma vez que é dona de uma pequena joalheria —, Helen se compadece da vítima de Ivan e resolve enviar ao Dr. Jorge, por meio de relatos diários em forma de longos e-mails, sua história de como conheceu Ivan e como se desenrolou a sua história pessoal com ele.

Os capítulos se alternam entre esses relatos muito francos ao psicanalista, em forma de flashback, sobre a relação amorosa com Ivan; e a narrativa, no tempo presente, sobre os preparativos desse ambicioso projeto de assinar uma coleção de joias. A protagonista discorre sobre sua paixão pela joalheria e gemologia, e o faz tão brilhantemente que a autora nos convence de que domina o assunto (o que, no fundo, revela ser uma pesquisadora detalhista e incansável — tanto de pedras preciosas, quanto das facetas humanas.). E como não se apaixonar também por esses minerais, rochas ou materiais petrificados que, ao serem lapidados ou polidos, só têm a beleza ressaltada? É, indiscutivelmente, um universo maravilhoso ao qual Rosângela nos introduz, ainda mais ao discorrer sobre as propriedades terapêuticas associadas a algumas pedras preciosas.

Como observa com sagacidade a psicanalista Junia de Vilhena, em seu Prefácio, “a autora acredita em mulheres fortes, que embarcam em suas experiências, mas também sabem sair delas. Além disso (...) mostrando que esses dramas não são particulares, posto que relações tóxicas não são ‘privilégio’ de poucas mulheres. A extensa pesquisa que fez sobre narcisismo e perversão, que Helen utiliza como forma de elaboração, pode servir de alerta sobre o perigo que ronda muitas relações amorosas”.

Confesso que não tive como não me identificar (ou identificar homens que eu já conheci) nessa história que Rosângela tece com tanta habilidade. E acredito que nem seja o caso de ressaltar o viés das relações amorosas oriundas de redes virtuais, posto que o enfoque dado pela autora nem foi tanto este — a virtualidade apenas serviu como uma porta de acesso para que se estabelecessem os contatos iniciais. Embora, naturalmente, não há como negar que facilita muito as ações de determinadas pessoas de má-fé.

“Nenhum Rosto Reflete seu Rosto” é um romance que merece e precisa ser lido por todos (homens e mulheres). Finalizo minhas impressões com esta frase reflexiva de Helen: “A insegurança, até certo ponto, talvez seja criativa. Se eu fosse muito segura de mim mesma e sem nenhuma angústia não precisaria criar nada, pois tudo estaria pronto. É essa incompletude, essa vontade de ser mais e maior e transcender os limites impostos, essa ânsia de penetrar nos mistérios das coisas que me faz caminhar. Coisas bonitas não saem do nada e nem são feitas sem algum tipo de dor”.

Esta é a síntese do processo criativo.

PS.: Gostei muito de saber que foi publicado pela novíssima Arribaçã Editora, a mais nova da Paraíba — nascida em pleno Alto Sertão, na cidade de Cajazeiras. Vamos prestigiar o Nordeste!
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Alexandre Kovacs / Mundo de K 20/09/2019

Rosângela Vieira Rocha - Nenhum espelho reflete seu rosto
Editora Arribaçã - 268 Páginas - Projeto gráfico de Fábio Oliveira - Capa de Luiz Prates - Prefácio de Junia de Vilhena - Lançamento: 2019.

Helen é uma mulher solteira de quarenta anos, independente financeiramente e proprietária de uma pequena joalheria onde se dedica à criação de peças exclusivas. Ela conhece Ivan Hernández, um argentino que mora em Buenos Aires, por meio das redes sociais e a amizade virtual acaba evoluindo para um relacionamento abusivo com requintes de crueldade, um tema muito atual e cada vez mais comum em um mundo conectado e globalizado, no qual as pessoas se tornam cada vez mais solitárias.

Por meio de uma prosa elegante e um ponto de vista essencialmente feminino, a autora descreve em detalhes como a protagonista é envolvida por uma rede de ações premeditadas que evidenciam um tipo de sociopatia conhecida como "narcisismo perverso". Pessoas com este tipo de desvio de comportamento não conseguem se colocar no lugar do outro, mas são extremamente hábeis em fingir um interesse genuíno ao identificar as carências e desejos do parceiro, com a única finalidade de seduzir e dominar. Na verdade, a relação tem caracterísitcas de um golpe financeiro, como tantos outros na internet, mas envolve não apenas dinheiro, os narcisistas são como vampiros emocionais, desejam tomar os sentimentos e as emoções da vítima.

O recurso narrativo utilizado pela autora foi uma série de e-mails escritos por Helen com a finalidade de ajudar um psiquiatra no tratamento de uma paciente internada em estado grave de depressão, vítima do mesmo psicopata que a assediou no passado. As memórias da protagonista são intercaladas por momentos no presente, onde ela, já recuperada, trabalha no lançamento de uma coleção de joias. Por sinal, o livro demonstra uma extensa pesquisa sobre lapidação de pedras preciosas, tipos de gemas, processos de fabricação e design.

"Havia algo misterioso em relação ao trabalho e à situação financeira de Ivan. Ele não se alongava em nenhum desses assuntos. Respondia com cortesia, mas sem precisão, de maneira lacônica e com uma leve pitada de agressividade, como se sinalizasse que me considerava inoportuna, deixando entrever, nas entrelinhas, que eu o estava submetendo a um interrogatório. Nesses momentos negaceava, escapulia e eu acabava me calando. / Deveria ter levado esses alertas interiores a sério, mas não o fiz. Sem contato pessoal é difícil, pois os diálogos são invariavelmente incompletos, ainda mais quando não sabemos quase nada sobre o outro." (p. 63)

O poder de controle de Ivan sobre Helen demonstra como o nível de violência psicológica vai aumentando gradativamente neste tipo de relacionamento, atingindo um poder de destruição que pode exceder até mesmo os danos da agressão física, que não chega nunca a ocorrer no livro. O "narcisismo perverso" não é uma prerrogativa de um gênero sobre o outro, mas na nossa cultura machista é obviamente bem mais comum encontrar homens dominadores e narcisistas que atuam como verdadeiros predadores no mundo virtual ou real.

"Ao que parece, Ivan não trabalhava. O seu tempo era investido em mim, em ouvir as minhas histórias, até mesmo as desinteressantes, do cotidiano. Ele colecionava os meus relatos de maneira tão obsessiva que chegava a me impressionar. Demonstrava ter muito boa memória. Sentia-me constantemente em falta, ora com ele, ora com a joalheria. Sua permanente comunicação e atenções exageradas às vezes me assustavam um pouco, mas creio que ele acabava percebendo e recuava, posicionando-se alguns metros atrás, pelo menos durante algumas horas ou alguns dias. Eu vivia em constante paradoxo, encantada e ao mesmo tempo meio sufocada pela voracidade de Ivan." (p.85)

O prefácio da psicanalista Junia de Vilhena destaca muito bem a questão da dupla vitimização da mulher, tão bem descrita no livro: "vista eternamente como frágil, indefesa e capturada. Ser vítima torna-se quase uma condição natural, já que a mulher é universalmente vitimada pela opressão social. Isto termina por desqualificá-la, reduzindo-a a um estado de passividade absoluta, já que suas atitudes são apenas reativas, enquanto o homem que agride é dotado de vontade, intencionalidade, livre arbítrio."

"Aprendi que narcisismo pode não se referir apenas a pessoas vaidosas, egoístas, individualistas, que se deleitam com suas imagens no espelho. É um transtorno espectral, existe num contínuo que vai de alguns traços até à desordem narcisista da personalidade em sua extensão completa. No extremo inferior do espectro, a pessoa está bem, pois o narcisismo é necessário, para que se possa ter autoestima e enfrentar o mundo. Contudo, à medida que vai avançando no espectro, a partir de determinado ponto torna-se tóxico, impedindo que a pessoa veja a si mesma como é realmente e cegando-a para os outros." (p. 232)
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Glauber Vieira 09/02/2020

Livro belo e necessário
Nenhum espelho reflete seu rosto não é apenas um livro bem escrito, mas uma obra necessária por tratar de um tema atual e que tanto sofrimento traz, o dos relacionamentos amorosos abusivos.
A autora entremeia os relatos da personagen Helen sobre tal relacionamento, por meio de e-mails direcionados a um médico, com a vida atual dela, que ainda supera esse relacionamento e direciona sua energia no trabalho como joalheira.
As explicações técnicas sobre pedras preciosas e o processo de lapidação também são muito interessantes.
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