Traudy 20/02/2015
Sociedade, Gêneros e Coração
A Missão da Mulher, além da linguagem pessoal, trata sobre um assunto do qual é impossível não estar incluso enquanto ser humano: as relações entre os gêneros e as implicações para a sociedade; assim, passar os olhos por seu conteúdo faz rever as convicções e atitudes de cada um nesse âmbito, o qual permeia toda a existência.
Embora já estivesse ciente do aspecto negativo de uma cientifização exacerbada do modelo social, nunca havia pensado que a preferência pela racionalidade de nossos tempos modernos era – em termos gerais – resultada de uma hermenêutica predominantemente masculina da realidade. Segundo o autor, Paul Tournier, a eleição unilateral da razão e da mecânica implicou na constante desumanização da civilização, principalmente a ocidental e inclusive no aspecto religioso. Isso não teria sido consequência do destino, em que acidentalmente a dimensão pessoal ficou relevada a planos adiáforos; pelo contrário, foi uma questão de escolha consciente.
É o que teria acontecido de forma mais marcante na Renascença, quando a rejeição e submissão da mulher coincidiram com a perda do sentido da pessoa. (Até se podem observar os reflexos disso na crise das ciências humanas – seu menor prestígio em comparação às exatas está estritamente relacionado pelo fato de não serem disciplinas exclusivamente masculinas.) Aqui Tournier chama a atenção para um aspecto histórico em geral desconhecido hoje: sim, apesar de existirem preconceitos de gênero desde a Antiguidade, é de fato durante o venerado Renascimento em que há um rígido retrocesso nessa questão.
Para minha grande surpresa, justamente a Idade Média – embora não em sua totalidade – era um grande exemplo da autonomia, participação e liberdade feminina; ao contrário do que geralmente é cogitado, a inserção da mulher na economia não é algo inovador no século XX. Não raro houve rainhas de grande poder na Europa; em alguns lugares, existiam votos masculino e feminino igualitários; nos vários registros medievais podem-se encontrar inúmeras mulheres exercendo uma ampla gama de ofícios (professoras, médicas, farmacêuticas, escultoras, tintureiras, copistas, miniaturistas, encadernadoras, etc.); e, no que se refere a intelectualidade, muitas freiras rivalizavam com os monges mais eruditos. Partindo de uma análise histórica, até a crítica atual de que a mulher saiu do lar é unilateral: pois na era medieval os dois pais trabalhavam em casa (!) ou próximo a ela em virtude da atividade manual, mantendo-se próximos constantemente entre si e a todos os membros da família.
Tal flexibilidade finda com a retomada do rígido direito romano pelo espírito renascentista, a exemplo da consolidação do absolutismo monárquico, da urbanização, e da formação de sentimento nacionalista; inclusive a matança infundada de supostas “bruxas”, inspirada pelo escrito “Martelo das Feiticeiras” encontrou seu auge em pleno Iluminismo. O aporte da razão, da lógica e da tecnologia em um período fortemente assolado por fome, guerras, doenças e diluição de paradigmas – como o foram os séculos XV e XVI – levou à rejeição e bloqueio das emoções, tão intensas e destruidoras, e à fuga das irracionalidades da vida, como o sofrimento e a morte. Consequentemente, desde então com mais veemência o homem prioriza o conhecimento objetivo, recalcando seus sentimentos e inferiorizando e excluindo a mulher, que naturalmente tende a expressá-los mais. A busca por uma sociedade impessoal, sem a influência feminina, levou à sua mecanização através da centralização dos grandes Estados, da concentração econômica, e da burocracia; contudo, o seu excesso conduz à dissipação da responsabilidade individual e a abusos morais.
Achei a retrospectiva interessantíssima, esclarecendo os processos que estão por trás da formação de nossa cultura; as necessidades de nosso tempo podem ser mais bem assimiladas dessa forma. Mediante uma nova onda da ascensão e integração da mulher, por exemplo, tem-se a crise dos novos modelos familiares – qual é o certo? Ou então foi errado o êxodo feminino do lar? O olhar para trás apontará para o que transcende as questões: existe um sistema trabalhista problemático, que arranca pais e mães do contato familiar.
É este sistema, elaborado sem a contribuição afetiva e com vistas normalmente ao benefício a curto prazo, que precisa ser mudado. Isso significa mudar a mentalidade das pessoas que o compõe. Para isso, portanto, Tournier apela à missão da mulher. Sabe-se que a emoção e a sensibilidade não são fatores exclusivos de determinado gênero, mas sim características da espécie humana como um todo; assim, homens e mulheres são chamados a resgatar a dimensão tão importante – aliás, a verdadeira responsável pela qualidade de vida – que desprezaram no passado. Tanto que o autor observa ainda que o emprego de “masculino” e “feminino” é simbólico, representando tendências e associações feitas a cada um, ao invés de conceitos rígidos. Contudo, também é sabido que o desenvolvimento cerebral entre os sexos não é idêntico: a especialização em um dos hemisférios faz dos rapazes relativamente mais aptos ao plano espacial – técnico –, ao passo que as meninas o são para com a grandeza verbal – linguística e comunicativa; por isso Tournier escolhe voltar-se particularmente às mulheres, as quais vocaciona para pôr em prática o seu dom inato e espontâneo.
Notável é que Tournier entende essa incumbência como uma complementaridade, uma vez que intelecto e sentimento lhe parecem dois polos de um mesmo eixo, e não opostos. O ideal é que a reação não seja somente analítica – o que é mais fácil em um primeiro momento –, mas que se desenvolva uma de caráter pessoal, sentimental. Além disso, recusa-se a tomar posição sobre a forma que a mulher tomará para dar a sua colaboração, pois não são condutas ditadas que devem significar a missão: antes, trata-se de conscientização – ela precisa “distinguir que tipo de contribuição sua sensibilidade e sentido da pessoa lhe permite levar à sociedade, quer esteja no lar, no trabalho ou na política.”
Afora o que se refere às instituições coletivas, outro aspecto relevante para a tarefa de transformação proposta por Tournier é conhecer como a mulher foi afetada em seu ser: os últimos cinco séculos não apenas suprimiram a sua capacidade peculiar, como a oprimiram, feriram, menosprezaram e entristeceram. Há as que, devido à pressão dos valores masculinos, acabaram por assimilá-los – inclusive o desprezo por si mesmas – ou recalcá-los – piorando a relação com os homens; muitas desenvolvem neuroses (em número bem maior do que eles); e aquelas que procuram ajuda médica para sua emotividade não o fazem com respeito ao seu controle, mas sim pelo fato de não conseguirem dirigi-la para tarefas criativas.
Um ponto lamentável em meio a tudo são os frequentes conflitos entre casais, incapazes de se entenderem mutuamente. (Pergunto-me se tal não faz parte das sequelas da segregação (in)visível: “isso é coisa de menina”; “aquilo é só pra menino”.) Se às vezes homens podem ser insensíveis, prezar demais por sua virilidade, ou não se aperceber do desdém inconsciente que nutrem pelas mulheres – até mesmo por sua companheira, tratando-a como posse, ignorando suas falas e conselhos –, também nem sempre são bem compreendidos por elas: muito do que se julga ser frieza é a expressão da “petrificação” de não saber como reagir diante de carência ou desabafo emocionais. A perspectiva do desconforto masculino em questões pessoais precisa ser trabalhada. E o casamento pode ser um bom lugar para isso. Ou, infelizmente, não.
Nos capítulos finais há ainda uma abordagem curiosa: a interessante comparação da cultura com a seleção natural e os desenvolvimentos genéticos destaca a interessante manobra em que natural e histórico se aliam na busca por mudanças e equilíbrio.
Por fim resta o chamado desafiador: homens e mulheres, coloquemos o coração e as mãos na massa para reformar a sociedade!