Arsenio Meira 12/08/2013
O último grande poeta brasileiro vivo
Gullar é para poesia o que Nílton Santos representa para o futebol.
Para quem não conhece Nilton Santos, trata-se de um lendário lateral esquerdo, que jogou no Botafogo nos anos 50 e 60 e na seleção Brasileira Campeã do mundo em 1958 e 1962.
Nilton, hoje doente, com problemas de ordem neurológica, atendia também pelo apelido de “a Enciclopédia”.
Ferreira Gullar continua na aptidão das suas faculdades mentais, e hoje carrega nos ombros a responsabilidade de ser o maior poeta Brasileiro vivo, e um dos grandes de todos os tempos.
Estas notas representam uma breve resenha sobre a seleção dos poemas, organizada e prefaciada pelo notável critico literário Alfredo Bosi.
O volume reúne a obra poética de Ferreira Gullar de 1956 até 1980, quando então publicara seu último livro de poesia, "Na vertigem do Dia." Em dezembro de 2008, a Nova Aguilar lançou Poesia Completa, Teatro e Prosa.
Gullar tem vastíssima cultura poética, manja escultura e pintura, e tem uma formação política que não foi tirada somente dos livros, do lero-lero acadêmico ou mesmo de orelha de livro.
Ele nunca mendigou cargo comissionado em rodinhas babacas de pseudos esquerdistas. Ele era um combatente político, de esquerda – efetivo e sem delongas.
No exílio ou depois dele, viu a família literalmente desintegrar-se. Perdeu um filho. O outro sofre hoje as seqüelas de uma vida com transtornos psiquiátricos. A esposa Tereza Aragão, atriz, também ativa militante política, morreu jovem, em 1993.
Então, ele não é dessas figuras falsas, decorativas, que só conseguem apregoar uma melhor distribuição de renda, com a indefectível dose de Johnny Walker na mão
Foi o poeta que redimiu toda uma geração, a partir da publicação do seu primeiro livro "A Luta Corporal", lançado em 1954.
Um escritor que pertenceu à avant-gard, e foi da arte útil ao ceticismo humanista sem perder o prumo. Raros os poetas que tem a vivência e o currículo cultural que ele ostenta.
Em seu início experimental, escreveu sobre “a inutilidade do canto”; definiu o galo como um “mero complemento de auroras” e o ser humano como “um ser grave, que não canta senão para morrer”.
Tem mais.
De se reconhecer – é minha opinião – que uma pequena parte de sua poesia-panfleto ou manifesto está datada.
Digo que datou em parte, porque mesmo em seus momentos mais secundários, ele fez inúmeros golaços e, generoso, escreveu que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”.
Em "Dentro da noite Veloz", já angustiado e premido pelos milicos de 64, tratou logo de avisar que: “do salário injusto/ da punição injusta/ da humilhação/da tortura e do terror/retiramos algo/ e com ele construímos um artefato/ um poema, uma bandeira”.
Após ter passado por privações – inerentes aos que devotam a vida por uma causa perdida – no fim dos anos 80 Gullar admitiu finalmente que o principal objetivo do artista é, em suma, produzir boa arte.
Ele, que experimentou as escaramuças do concretismo. Rompeu com os irmãos Campos, e em seguida propôs o neoconcretismo.
Queria mesmo “explodir” a linguagem, transformá-la em espelho do seu inconformismo, objeto de sua contemplação bélica, pois o mundo, conforme sua visão, é um mapa cheio de furos, e as pessoas, guiadas por homicidas, caminham - sem reação – em sentido oposto à paz.
O Poeta não iniciou sua trajetória fugindo completamente do convencional, posto que começou com sonetos (por sinal, belos sonetos – vide os Sete Poemas portugueses); porém, logo alcançou ritmos distantes da poesia praticada pela geração de 45, entoando dicções variadas com um feixe de luz própria.
Sexo, vida, infância, morte, angústia, inquietação, protesto fazem parte de itinerário poético. Quem pensou que o Poeta se vergaria diante das injustiças ditatoriais, recebeu de presente direto do exílio o mítico "POEMA SUJO."
Para chegar nesse ponto, não precisou falsificar sua sensibilidade. Na seleção dos seus Melhores Poemas, organizada por quem entende e muito do riscado, encontramos o verso livre, límpido, cortante ou mesmo rimado; a poesia em prosa, cordel, poesia espacial, concreta, política, lírica, enfim, uma saraivada de petardos, que termina por assombrar o leitor.
E assim ele seguiu e segue, produzindo poemas que resistirão ao tempo. O tempo, este ente que trabalha furioso contra os inertes.
Para finalizar, eis Ferreira Gullar de carne e osso, dor e revolta:
O AÇÚCAR
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema,
Não foi produzido por mim,
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
Como beijo de moça, água
na pele, flor que se dissolve na boca.
Mas este açúcar
Não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da Usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes,
onde não há hospital ,
nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos,
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café
esta manhã em Ipanema.