Rodi 28/12/2013
“AQUI HÁ OTIS!” (E MUITO MAIS)
Publicado pela primeira vez há 20 anos pela Companhia das Letras, o livro O Desatino da Rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais continua sendo uma referência para jornalistas e aspirantes à profissão. Humberto Werneck, autor do Desatino, nasceu em Belo Horizonte em 1945 e começou a trabalhar como jornalista no Suplemento Literário do Minas Gerais. Atualmente vive em São Paulo e escreve para o Estadão.
Quem se depara com a segunda edição, também publicada pela Companhia das Letras, é logo atraído pela capa: uma foto da década de 1920 do Café Acadêmico localizado em Belo Horizonte. A imagem reflete a característica mais marcante dos escritores mineiros, “autênticos e de coração”, que pode ser notada ao longo da narrativa: uma boa discussão literária em um bom café. O conteúdo da xícara é o que permanece em segredo.
“A história que aqui se vai contar começa no ano de 1921, no instante em que a mais famosa de suas personagens, um adolescente magrinho, de óculos, entra numa redação de jornal, na Rua da Bahia, em Belo Horizonte.”. O capítulo de abertura, Aqui há Otis, traz a figura literária mais famosa de Itabira, Carlos Drummond de Andrade, como jornalista – “a única coisa na vida que faria com certo prazer” - do Jornal de Minas e posteriormente do Diário de Minas, ao lado do poeta Alphonsus de Guimarães.
Drummond é figura presente do início ao fim da narrativa, mas não se engane ao pensar que o escritor era “triste, orgulhoso: de ferro.” logo nos anos 20. O rapaz itabirano se aventurava tarde da noite no bairro Floresta escalando o arco do recém-construído viaduto de Santa Tereza ou tentando se passar de herói, ao lado de Pedro Nava, colocando fogo na casa das Vivacqua – moças responsáveis por sediar saraus literários – para logo em seguida apagarem.
A obra de Werneck abrange, em sua maioria, o movimento modernista. Iniciado no Brasil em 1922 com a Semana de Arte Moderna que foi sediada no Teatro Municipal de São Paulo, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, entre outros, abririam as portas de uma vanguarda que em breve chegaria à Minas Gerais causando escândalos literários. Farpas não faltaram.
Uma dessas farpas foi a publicação, em 1928, do poema No Meio do Caminho, de Drummond, na Revista de Antropofagia de Oswald de Andrade. O Grupo do Estrela, formado por jovens modernistas – entre eles Drummond e Pedro Nava – foi alvo de retaliações nas mãos do escritor Eduardo Frieiro que considerava a imprensa uma “porcaria” e desprezava as opiniões de jornalistas e literatos: “O jovem esteta P. banca o crítico de arte, mas de pintura só conhece os quadros do Xisto Vale, expostos ali na vitrine da Casa Guanabara.”.
O jovem prefeito da época, Juscelino Kubitschek, também não escapou da língua afiada de Frieiro. Durante a construção do conjunto arquitetônico da Pampulha – Cassino, Iate Clube, Casa do Baile e Igreja São Francisco de Assis – Eduardo Frieiro afirmava que o projeto não passava de “uma criação típica do capitalismo: obra do vício e, enfim do capital, que o luxo fomenta e alimenta.”. A inauguração da Igrejinha também enfrentou empecilhos e ficou fechada por 15 anos, quando a Cúria Metropolitana admitiu que “embora nascida na prancheta de materialista, também era uma casa de Deus” ou um “hangar de Deus” segundo alfinetada de Frieiro.
Quase toda a narrativa se concentra em Belo Horizonte, mas a vanguarda modernista também se infiltrou no interior das Gerais. A revista Verde de Rosário Fusco - que solicitou ao autor de Pauliceia Desvairada que mandasse “uma bosta qualquer” para sua publicação de seis números, editados entre 1927 e 1929 – colocou a cidade de Cataguases no mapa. Outra “vanguarda interiorana” foi a revista Electrica que surgiu em 1927 na cidadezinha de Itanhandu. Heitor Alves, responsável por sua criação, reinventou o conceito de revista modernista, “Electrica não se limitava a divulgar poesia, ensaio e ficção – era uma espécie de almanaque, um tanto caótico, revista de variedades a que não faltaram, por exemplo, anedotas, noticiário social e até um concurso para eleger a Princesa e a Princesinha do Sul.”.
Além de relatos, depoimentos e citações, o livro apresenta imagens dos jornais e das revistas citados, fotos dos protagonistas do jornalismo mineiro e da paisagem belo-horizontina. Destacam-se a Rua da Bahia nos anos 20 – “época em que era o centro da boemia literária e jornalística de Belo Horizonte”; o famoso Bar do Ponto em que os frequentadores bebiam cachaça em xícaras para “não caírem na língua do povo”; os integrantes da Geração Suplemento, na redação, entre eles o autor do Desatino da Rapaziada, Humberto Werneck.
O Desatino da Rapaziada pode ser considerado um livro essencial para os jornalistas e para os belo-horizontinos, mas antes de tudo, de leitura obrigatória para os jornalistas belo-horizontinos. Não há como, ao folhear as páginas, não consultar um mapa ou a memória ao ler o nome de ruas e edifícios que antes foram abrigos de grandes escritores e que hoje passam despercebidos aos olhos de quem passa, mas não repara. O desatino de imaginar como eram os anos 20 na capital mineira fica para aqueles que se sentiram mais mineiros, “autênticos ou de coração”, após a leitura.