Absolute Friends

Absolute Friends John le Carre




Resenhas -


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Spy Books Brasil 24/10/2023

Um dos melhores de Le Carré
Quem me acompanha por aqui sabe que eu leio um livro de John Le Carré por ano. Alguns são melhores do que outros, porque nem os maiores escritores podem acertar sempre. No Spy Books Brasil, eu inclusive tenho um post indicando indico quais são os melhores e os piores livros do autor, na minha opinião.

Este Absolute Friends que acabei de ler entrou diretamente para o top 3 dos melhores livros.

Os motivos eu vou explicar nesta resenha. Antes, porém, vamos conhecer um pouco da trama.

A trama – Edward Mundy é um britânico cinquentão que vive em Munique, na Alemanha, com Zara, uma companheira turca mais nova do que ele, e o filho dela de 11 anos, Mustafá. Ted – apelido de Edward – praticamente adotou o menino como filho dele. Os três vivem num bairro majoritariamente turco/árabe, muçulmano e pobre. Ted tenta reconstruir a vida. A escola de inglês que ele mantinha em Hildeberg praticamente faliu depois que o sócio fugiu com o dinheiro. Ted trabalha como guia turístico para falantes de língua inglesa no castelo de Linderhoff, ponto turístico de Munique, e Zara trabalha num quiosque de kebabs durante a noite.

Uma vida pacata, de muita luta, olhando para o futuro de Mustafá. Até que um amigo do passado de Ted, um alemão chamado Sasha, aparece para visatá-lo no castelo.

Sasha representa uma outra vida de Ted, que ele luta para deixar para trás. A grande questão do livro é se ele vai conseguir fazer isso mas, para sabermos a resposta, precisamos primeiro conhecer a vida de Ted Mundy e de seu amigo Sacha.

As personagens – A forma como Le Carré inicia o livro já é, por si só, completamente fora dos padrões. Ele não apresenta claramente um conflito. Ok, o surgimento de Sacha no primeiro capítulo indica um mistério, mas não exatamente um conflito. Infelizmente, a sinopse do livro dá um spoiler imenso sobre qual é o motivo do ressurgimento de Sacha, algo que só vai ser revelado muito adiante. Aqui, seguindo a minha promessa de não dar espoilers – nem reproduzir os que já foram dados –, vou deixar essa informação de fora.

O protagonista, Ted Mundy, é um caso arquetípico que transita entre o amante – na vida privada, ele claramente busca a intimidade, é o cuidador que traz ordem à vida de Zara e de Mustafá – e o comediante – na vida pública, Ted usa o humor, como uma espécie de bobo da corte no papel de guia turístico.

Ted Mundy, porém, tem um passado diferente. Após apresentar a vida atual dele e o mistério do reaparecimento de Sasha, Le Carré nos leva de volta no tempo para contar a infância de Ted, desde o seu nascimento em Lahore, quando essa região era parte do império britânico na Índia e, após a independência, se tornou parte do Paquistão.

É aí que entendemos a construção desses dois arquétipos, ambos no campo da conexão com as pessoas. Ted perdeu a mãe ao nascer. Foi criado por um pai distante e alcoólatra, um oficial desonrado do Exército Imperial britânico que serviu na Índia e depois no Paquistão. Mundy passou a infância entre árabes e praticantes da fé islâmica. Sua referência materna era uma aia paquistanesa com quem ele perdeu contato depois que o pai foi expulso do Pasquitão e teve de retornar à Inglaterra, na adolescência de Ted.

O tema da relação conturbada com um pai no mínimo controverso é recorrente na obra de Le Carré, ele mesmo filho de um golpista de caráter bastante questionável, que o atormentou na infância.

Sasha, por sua vez, inicia como uma personagem secundária que se enquadra perfeitamente no arquétipo do rebelde. Ele vai crescer ao longo da história, mas será o eterno rebelde. Líder revolucionário na Berlim Ocidental em 1969, onde os dois se encontram, ele desempenha um certo papel de mentor para o carente e deslocado Ted.

O carisma de Sasha conquista corações e mentes dos jovens deslocados num mundo murado e dividido, representado fisicamente pela antiga capital alemã. Sasha carrega, porém, suas próprias fragilidades expressas na condição física: baixa estatura da personagem, com uma perna claudicante e ombros deslocados. Ted, em sua busca desesperada por pertencimento, por fazer parte, se recusa a enxergar as limitações de caráter do mentor que ele protege e idolatra.

Não vou me alongar mais sobre as personagens, porque inevitavelmente eu começaria a dar spoilers.

Alta literatura – Existe um certo preconceito no mundo da alta literatura com thrillers de espionagem, mas este livro – e por isso eu o classifico entre os melhores de Le Carré – transcende o gênero. O mistério não é o fio condutor da história, e sim a construção humana de Ted Mundy. Le Carré toca em temas fundamentais do ser humano, como as escolhas ao longo da vida, o sentimento de pertencimento, o sentido de nossas ações.

Muito provavelmente, o fato de eu estar na mesma faixa etária da personagem influenciou minha leitura, porque em alguns momentos, o livro parecia estar falando diretamente comigo. Algo difícil de encontrar nesse gênero, geralmente formado por livros mais rápidos, com tramas ágeis e pouco profundas.

Ao longo do histórico de leitura eu fui pontuando algumas passagens que me tocaram e provocaram reflexões pessoais sobre a vida. Aqui, vou reproduzir apenas a mais marcante, mas quem se interessar pode clicar no link acima para ver as outras.

"[…] in life, if you take enough wrong turnings, at a certain age you end up right where you started […]" Ted Mundy, em Absolute Friends.

Força da personagem – Uma das coisas boas da consagração é a liberdade que o autor conquista para criar e descartar fórmulas pré-estabelecidas. A forma como Le Carré aposta na máxima que dá à personagem o status de principal elemento para manter o leitor na história ilustra isso. Ele não cria um conflito claro nas dois quintos iniciais do livro. Usa esse enorme espaço para construir Ted Mundy como uma personagem irresistível, na certeza de que ele vai conquistar o leitor e não o deixará abandonar o livro.

O resultado é maravilhoso. Especialmente quando todos aqueles detalhes aparentemente soltos sobre o passado errante de Ted convergem numa amarração que resgata cada pedaço de informação, por mais insignificante que pareça. Tudo devidamente ressignificado, criando um novo sentido para a vida em que Ted mergulha adiante, sem nenhuma ponta solta.

Mocinhos e heróis – Outra subversão dos manuais é a total indefinição sobre quem são os mocinhos e quem são os heróis dessa história. Sem estereótipos, tudo é muito sutil. Ted Mundy é uma espécie de anti-herói guindado à condição de protagonista e nós sofremos com ele as mesmas dúvidas para definir quem está de qual lado. Dúvida essa ainda mais marcante e pronunciada nos dias de hoje, 20 anos depois que Le Carré escreveu esse livro, quando vagamos perdidos entre as construções de narrativas lógicas – ainda que falsas – tão bem espalhadas pelas redes sociais.

E é aí que reside o tema principal de Le Carré. Em 2003, quando o livro foi publicado, Estados Unidos e Inglaterra haviam acabado de invadir o Iraque usando como justificativa um relatório de inteligência sobre a presença de um arsenal de armas químicas iraninanas que mais tarde se revelou falso. Ted Mundy é um crítico dessa guerra, logo no início do livro isso é colocado. Le Carré vai construir um plot justamente sobre a criação de narrativas para justificar atos extremos e gerar lucros para toda uma cadeia de produção que precisa da guerra como alavanca de crescimento.

Recomendação de leitura – Para mim, esse livro entra para a lista dos obrigatórios. Por toda a profundidade, pela excelência da construção de personagens e de um plot que só se revela, em sua totaltidade, no último capítulo do livro, quando aí sim, fica claro para o leitor quem, afinal, estava de cada lado da cerca que divide mocinhos e bandidos. A versão dele em português, publicada pela Editora Record, está disponível apenas em sebos. A versão em inglês, em formato digital, tem preço bem convidativo na Amazon.

site: spybooksbrasil.wordpress.com
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