Leila de Carvalho e Gonçalves 03/09/2019
34 Contos
Silvina Ocampo (1903-1993) é considerada um dos principais nomes da literatura argentina, todavia seu reconhecimento foi tardio. Boa parte da vida, ela foi ofuscada pelo brilho da irmã Victoria, do amigo Jorge Luis Borges e do marido Adolfo Bioy Casares, com quem viveu um casamento aberto durante 53 anos, ou melhor, até sua morte.
A bem da verdade, oculta detrás de um par de óculos gatinho ou escondendo o rosto com as mãos nas fotografias, ela sempre foi muito reservada. Pouco se sabe sobre sua vida particular e o significado de grande parte de seu trabalho é um desafio para o leitor.
No Brasil, sua obra jamais despertou maior interesse, apesar da alardeada semelhança com os escritos de Clarice Lispector. Todavia, ultimamente seu nome veio à baila, graças a publicação da ?Antologia da Literatura Fantástica? cuja organização reuniu Silvina, Casares e Borges.
Sem dúvida, uma participação que pode surpreender, em especial, se levar em conta que ocorreu há 82 anos, quando a literatura ainda era um reduto praticamente masculino. O mais curioso é que essa repercussão acabou corroborando para que a Companhia das Letras lançasse, em agosto desse ano, o primeiro livro da escritora em português. Trata-se do sexagenário ?A Fúria?, que totaliza 34 contos, a maioria editados entre 1937 e 1940 em várias revistas literárias, incluindo a ?Sur?, dirigida por sua irmã.
De acordo com Laura Janina Hosiasson, professora de literatura hispano-americana da USP, que assina o prefácio da edição, a prosa de Silvina ?é irônica, mordaz e, ao mesmo tempo, perversamente ingênua. Embalada pelo ritmo preciso da descrição dos detalhes, ela consegue capturar o leitor para dentro de um universo familiar e doméstico no qual o sinistro e o estranhamento se insurgem como uma onda capaz de destruir qualquer proteção à equilibrada rotina burguesa?. Por sinal, boa parte conta outra história nas entrelinhas, causando desfechos inesperados e três bons exemplos são ?O Médico e a Paciente?, ?As Fotografias? e ?O Mal?.
Polissêmicos, amorais e insólitos, esses contos destilam um humor sombrio, ao abordar temas nem sempre corriqueiros, como metempsicose (?A Casa De Açúcar?), antropomorfização (?O Porão?) e premonição (?Os Sonhos de Leopoldina?). Quanto às personagens, elas formam uma miscelânea sugestiva de onde despontam um relojoeiro corcunda (?A Casa dos Relógios?), uma criança homicida (?A Oração?) e um cachorro embalsamado (?Mimoso?). Sobre os espaços ficcionais, Silvina faz com que cada ambiente esteja ?ativamente ligados ao sentido profundo das tramas?, nada é escolhido ao acaso, sequer suas costumeiras descrições, e esta peculiaridade está vinculada em parte com sua vocação pictórica. Inclusive, quando jovem, ela chegou a estudar em Paris com Fernand Lèger e Giorgio de Chirico.
O título do livro foi sugerido por Borges e revela seu conto preferido. ?A Fúria? gira ao redor desse sentimento e também remete às Fúrias, divindades que puniam os mortais e personificam a vingança na mitologia romana. Silvina recria essa história e surpreende pela originalidade, todavia,o livro inicialmente seria intitulado ?A Lebre Dourada?, que é o primeira narrativa da lista e distingue-se pelo hermetismo e o caráter esotérico. Resumidamente, ele retrata uma perseguição de uma lebre por uma matilha e é uma parábola na qual o sobrenatural e o natural entram em contacto e confundem-se.
Finalmente, estimo que outros livros de Ocampo sejam publicados pela Companhia das Letras, como também ?La Hermana Menor?, de Mariana Henriquez, que, lançada em 2018, é a primeira obra biográfica sobre a escritora.