Rafael Ottati 15/09/2019Angela Alhanati e suas cápsulas do tempo que nos encantam."Para o costumeiro surto de piolhos, uma lata de veneno NEOCID na cabeça e uma touca de plástico para abafar. Passávamos o dia assim, com lenços na cabeça denunciando nossa periculosidade e, no fim da tarde, um banho com pente fino e vinagre. Não sobrava nenhum piolho vivo mas, milagrosamente, sobravam crianças sobreviventes." (p. 14).
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Ao ler o livro da Angela Alhanati, somos inundados por acontecimentos passados. A autora tem uma memória de elefante, lembrando dos menores detalhes de sua infância, juventude e início da vida adulta. Essa potência de memória fica evidente quando passamos os olhos pelas listas que ela cria. Suas crônicas, aliás, são cheias de listas: listas de objetos dentro da gaveta que quase nunca abrimos, lista de elementos associados à casa da avó, lista de produtos que usávamos para cuidar de nossa saúde (ou não!) antigamente etc.
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Se olharmos o trecho ali em cima que eu separei com atenção, perceberemos que as frases da autora nos levam a dois mundos distintos: ao dela e ao nosso.
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Quando falo do mundo dela, eu me refiro às especificidades da vida dela, ou seja, a tudo aquilo em que nela é singular. Neste caso, as crônicas servem como a porta aberta que nos leva ao quintal dela, onde nos sentamos e tomamos contato com as experiências de uma vida que é a do outro...
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Quanto ao mundo que é nosso, vêm à nossa mente lembranças paralelas, próprias, intensas e íntimas que possuímos. Não são iguais às da Angela Alhanati, mas são próximas, estão de alguma forma interligadas. Nunca usei NEOCID, mas havia outro produto radioativo (:P) cujo nome não lembro e que também usávamos perigosamente nos nossos couros cabeludos na infância. Da mesma forma, se na família dela, havia um tio que sempre deu o primeiro sutiã de todas as meninas, na minha havia um tio que falava sobre sexo com todos os moleques.
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Esse "parecido, mas diferente" é o que há de mais assombroso na leitura deste livro. Ao ler páginas tão pessoais e tão da Angela, vêm à nossa mente lembranças igualmente pessoas. Suas crônicas funcionam como uma cápsula do tempo, em que experiências coletivas foram "encapsuladas" e transformadas em letras que mexem conosco também.
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Ao fim do livro, parece que lemos sobre nós mesmos, que enfrentamos, de novo, nossas próprias perdas e experimentamos nossas próprias alegrias. Se estamos no quintal dela, ao Sol, esse quintal se expande e se torna, um tantinho, nosso. Só posso dizer isto: que quintal acolhedor e aconchegante! Faz com que desejemos não sair mais...
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