Os touros de Basã

Os touros de Basã Marco Aurélio de Souza




Resenhas - Os touros de Basã


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Krishnamurti 15/07/2019

O niilismo devastador em “Os touros de Basã”
A questão do niilismo é das que ainda hoje ocupam com força, o pensamento da filosofia contemporânea. Seu espectro está aí no horizonte de todos os aspectos relacionados à ética, atinge as mais variadas esferas do mundo contemporâneo (literatura, arte, ciências humanas, teorias sociais e moral) e lança as suas sementinhas por toda a parte. Mas de que niilismo estamos a falar, e que diabo afinal vem a ser isto? Deixemo-nos de retrospectivas e conceituações cansativas. Direto ao ponto. Sabem essa presente desvalorização (ou corrosão) dos antigos valores da cultura, acentuada pelo desenvolvimento de uma visão científica (meramente utilitarista), essa crise da teologia e tantas outras crises misturadas de roldão com a mais completa confusão acerca de questões intrincadas como cidadania, civismo, sexualidade e moral e que traçam esse nosso cenário de incertezas éticas sem precedentes? Muito bem; sabem ainda como muita gente anda reagindo a isso? Sabem. Nosso sisteminha safado de capitalismo de consumo que engloba uma parcela cada vez maior da população, deixa pouco espaço a projetos alternativos de organização social e econômica e as cabecinhas pouco acostumadas a pensar acolhem de peito aberto (e com muita lágrima também), o nada, ou ainda, o triunfo do nada na experiência humana. É a ausência de fundamentos, a falta de valores e verdades estáveis. Daí certa visão cética e radical em relação às interpretações dessa mesma realidade, que aniquila valores e convicções. É a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao “porquê”. A literatura por vezes, tem traduzido o que escrevemos acima em letra impressa, como variantes daquele antigo silogismo escrito por Dostoiévski: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”.

“Os touros de Basã”, livro de contos recém publicado pelo senhor Marco Aurélio de Souza, é campo fértil para pensarmos essas questões. Nele, o autor reuniu treze narrativas breves que merecem registro (ainda que superficiais), para uma análise da obra em seu sentido global. Adiante: trilhando uma linha de foco nos numerosos excluídos e injustiçados sociais encontramos os textos: “Demudado”, onde um pobre homem morador de uma favela, é confundido com um ladrão e apanha quase até a morte num linchamento assistido passivamente por muita gente. Já a narrativa “Passar bem”, é verdadeira epopeia de um pedinte de rua que, de tanto insistir em implorar esmola a um mesmo sujeito, acaba admitido em sua casa e tratado como um animalzinho de estimação. Esses certamente os melhores contos do volume porque, embora não devassem os universos interiores das personagens, registram a preocupação humana em denunciar essa nossa indiferença pela sorte do próximo, nossa imensa miséria econômica e social, nossa completa inversão de valores e etc. Entra aí nesse etc., nas trajetórias dessas vidas, a opressão e a dominação do ser periférico segregado em guetos.

Em outros textos enveredamos pela linha de um fantástico absoluto, puro. Aquele no qual a super-realidade finca raízes no real tal como o conhecemos pelos nossos grosseiros sentidos e pelos exemplos cotidianos. São exemplos “O lobisomem de ponta grossa” onde assistimos as peripécias de Juliano e seu inseparável vício em drogas, até o ponto em que chega a transformar-se num lobisomem a fazer sexo no meio da rua. Ainda nessa mesma linha temos “Animal Fronteiriço” que narra a tentativa de um sujeito de exterminar os pombos e suas fezes nocivas para a saúde humana, de uma certa praça. O tiro sai pela culatra porque alguns habitantes terminam alimentando os mendigos das redondezas, que finalmente passam a agir como se fossem pássaros. E “Satanás”, história de um cãozinho vira lata muito agressivo que acaba seus dias de viciado em crack, tragicamente. São textos nos quais estão bem caracterizados, ainda que metaforicamente, os ornamentos da miséria moral e o sentimento da inutilidade da existência.

A produção ficcional do autor apresenta-nos ainda, criaturas a viver em estado de brutalidade, guiadas por instintos e fatalismos cegos. Minadas por legados atávicos, sobretudo em relação ao sexo. É o que lemos em “Horário de pico” a nos mostrar os contorcionismos que um tarado faz dentro de um coletivo lotado para se esfregar em uma mulher. O desejo sexual incontrolável acomete também um professor de handball fissurado por uma adolescentezinha nada inocente em “Coberto de razão”. E finalmente, “Loucuras de amor”, que nada mais é do que o relato de uma maluca que acredita suportar as devassidões do amante (inclusive com a própria filha dela), porque ambos são loucos um pelo outro. Tudo muito bem aceito e contornado em nome das loucuras de amor que todo mundo comete (?).

Sobra sexualidade desbragada em “Scrap Buk” que é uma fotografia do baixo mundo da prostituição em Ponta Grossa no Paraná. “Briga de torcida”, um relato um tanto quanto jocoso de uma contenda que se inicia em um jogo de futebol e que termina resvalando para o machismo mais descarado e a política desavergonhada que assola o país. “Coluna Social” é um texto mais leve e bastante interessante porque dá voz a um colunista de jornal, e este, traduz a visão idiota da tal classe dominante, que simplesmente exclui, seja lá como for, aqueles que não se enquadram no sistema, ou seja, os malditos, os insuportáveis pobres e sua legião de criancinhas. A cidade escreveu ele, se hoje ostenta ares de moderna e de vibrante crescimento industrial, por outro lado, espalha pelas ruas “uma coleção de mendicantes que, por detrás de sua carapaça de sujeira, nos revelam o lado perverso da abertura capitalista que ora experimentamos”. O texto conclui com a afirmativa imbecilizante do narrador ao orgulhar-se de que a cidade ganhara uma loja da MacDonald’s! “... mas comer bem!, entre todos os pecados, comer bem é certamente o mais gostoso – eu diria que é mesmo essencial.”

Em “Procurando pela realeza”, um sujeito, à propósito de um edital de fotografia lançado pela prefeitura local, resolve fotografar a cidade e o tema que ele escolhe é a alcunha que ela recebe de: “Princesa dos campos”. Isto induz-nos a pensar no feminino. E começam as cogitações de fotografar mulheres que, das mais variadas nacionalidades, deram o seu contributo ao povoamento da região. Neste ponto o leitor quase se convence que terá um respiro em meio à atmosfera de violência, tormento e tortura da obra. Finalmente quem sabe?, uma historinha onde entre algum lirismo amoroso, uma paquera, um encontro de almas talvez... Não é o que ocorre. As descendentes de polacas, alemães, italianas, russas ou as misturadas com brasileiros mesmo, não apresentam qualquer atrativo digno de registro. O que há é a mesmice, a futilidade, a ignorância e a generalizada falta de horizontes existenciais. Ao menos na ótica do narrador, um niilista juramentado. E então o sujeito se sente atraído por umas prostitutas gordas, sem eira nem beira a lanchar em um bar. Talvez... quem sabe?

Chegamos finalmente a “Os touros de Basã”. Basã era uma planície fértil localizada na área leste do mar da Galileia e do rio Jordão. Uma região mencionada na Bíblia onde viviam gados selvagens e indomáveis em seus ricos pastos. Entretanto, reza a lenda, que seus habitantes eram inclinados ao culto do dinheiro e ao poder que dele emana. Dados as exaltações das vis paixões e sem qualquer acanhamento de praticarem baixezas pela vida afora. O texto do senhor Souza, vai fundo na linha do apocalipse now. É a desgraceira completa de um viciado em drogas no limiar entre a sanidade e a mais completa loucura e às voltas com traficantes que buscam um “acerto de contas”. Estes por sua vez, andam tão narcotizados pelo álcool, pelas drogas, pela sexualidade monstruosa e pela violência quanto ele. Não suportam – todos eles -, os ditames violentamente repressores da vida que levam por iniciativa própria, ou a que foram induzidos, o que não os impediria de buscarem aquela convivência critica que, partindo da revolta, se viabiliza na reflexão que produz transformação. A revolta alucinada permanece no nível da revolta, impossibilitados que estão de refletir para acionar, dentro de si, aqueles mecanismos de reajustes em face da realidade e das circunstancias. São seres incitados a buscar estados de paroxismo que redundam em mais violência. Aí aquele niilismo do qual falamos no início.

Ante essa opção de focar temas tão dramáticos e atuais por certo, sentimos a falta de um ‘zoom’ que nos aproximasse mais da realidade íntima das personagens. Parece-nos que no campo da propagação desse sentimento niilista – e que certa mídia poderosíssima tem todo o interesse em propagar -, existem excessos de avaliação. Vale dizer, de credibilidade quanto à abrangência do incêndio. Tal afirmativa se estriba no fato de que as criaturas desse livro (quase todas) estão sempre armadas contra si próprias e contra o semelhante. Sem qualquer saída.

Não há sinais de humanidade. Não têm nenhuma possibilidade de redenção porque não só não possuem a capacidade de inquirição existencial, como também não aprenderam a viver com suas emoções e seus instintos em equilíbrio... E é preciso dizer isto também. A mera reprodução de todo esse desequilíbrio positivamente inviabiliza as vastíssimas possibilidades que a literatura tem. É como radiografar um tumor e mostrá-lo ao leitor. Há de se buscar na ficcionalização de certos estados, aquele momento íntimo de esclarecimento. Aquela luz no fim do túnel da existência. O protagonista de “Os touros de Basã” particularmente, é um indivíduo que se torna uma espécie de míssil a caminho de seu próprio aniquilamento, um consumidor de suas chances e de si mesmo. Simplesmente isso.

Livro: “Os touros de Basã” – Contos de Marco Aurélio de Souza – Editora Kotter – Curitiba - Paraná , 2019, 110 p. - ISBN 978-85-68462-94-2
Link para compra: https://kotter.com.br/loja/os-touros-de-basa/
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Aguinaldo 03/10/2019

os touros de basã
Marco Aurélio de Souza é um jovem paranaense que tem publicado regularmente romances, contos e poemas, desde o início dos anos 2010. Recentemente ele lançou "Os touros de Basã", um volume de contos. São treze histórias que gravitam vidas de pessoas marginalizadas, indivíduos que foram derrotados pela vida, sujeitos azarados, loucos, intoxicados, sujos. Marco Aurélio faz seus personagens padecer suas misérias em Ponta Grossa, no interior do Paraná, mas as histórias poderiam ser contadas desde a periferia de qualquer lugar do Brasil contemporâneo, país onde a desigualdade é norma, onde o isolamento daqueles que não são afeitos a regras sociais é terrivelmente comum. Nos contos o leitor acompanha fragmentos da decadência física e espiritual de um homem; o autoengano de uma jovem prostituta; o sarcástico relato de um sujeito sobre o destino de sua cidade; o justiçamento de um garoto em uma favela; a lascívia de um professor de educação física por suas alunas; a metamorfose moral de um sujeito, que após matar os pombos de uma praça, passa a atirar em mendigos; os planos de um rapaz de se masturbar em um ônibus lotado; a fantástica história de mendigos que são adotados como animais de estimação; entre outras tantas histórias igualmente brutas. Gostei do resultado. Ojo. É o caso de acompanhar os livros deste sujeito. Vale!
Registro #1448 (contos #166)
[início: 17/07/2019 - fim: 30/07/2019]
"Os touros de Basã", Marco Aurélio de Souza, Curitiba: Kotter Editorial, 1a. edição (2019), brochura 16x23 cm., 120 págs., ISBN: 978-85-68462-94-2

site: http://guinamedici.blogspot.com/2019/09/os-touros-de-basa.html
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