@livrodegaia 10/07/2012
On the Road - Pé na Estrada, Jack Kerouac - Editora L&PM Pocket
Fui apresentada a On The Road, obra mais famosa de Jack Kerouac, pelo frisson que o lançamento da versão cinematográfica, do diretor brasileiro Walter Salles, vem causando. A Bíblia da Geração Beat, como é chamada por ser considerada o retrato do movimento, é um clássico internacionalmente reconhecido que provocou uma das maiores revoluções culturais na segunda metade do século XX e influenciou toda uma juventude. Não se pode ignorar, pode? Pois bem, foi o meu primeiro contato com a literatura Beat (Na Natureza Selvagem tem o mesmo free spirit, mas não acredito que se enquadre no gênero, uma vez que apresenta uma filosofia diferente).
Antes de adquirir On the Road, já tinha consciência de que sua narrativa era peculiar e que fez muitos leitores e críticos torcerem o nariz, mas como gosto de pagar para ver e conhecer novas propostas, virei de costas para qualquer tipo de preconceito literário e embarquei com Sal Paradise e Dean Moriarty rumo às estradas estadunidenses e mexicanas.
Confesso que estranhei o fluxo ininterrupto e confuso de informações que são jogadas na cara do leitor, mas entendi que essa narrativa inaugurada por Kerouac em prosa espontânea foi a maneira que ele encontrou para transcrever com exatidão e com a precisão de um anestesista, não só os fatos, mas a energia, as emoções, sensações, cheiros, sonoridade, visões e reflexões sem perder nenhum detalhe de suas experiências pessoais nas estradas da América no período pós-guerra. Sim, porque o personagem Sal Paradise, que narra a história, é o alter ego do autor, assim como Dean é alter ego de Neil, amigo que Kerouac passa o livro inteiro endeusando e aparentemente querendo ser. O mesmo ocorre com os demais personagens, são reais. Em outras palavras, estamos falando de uma espécie de autobiografia disfarçada de ficção.
A história foi inspirada no período da vida em que o autor levou nas estradas, e ele queria contá-la com movimento, que é o espírito da cultura Beat. Estranhei muito, reclamei mentalmente inúmeras vezes das descrições excessivamente detalhadas das paisagens (não tenho muita paciência e elevei mais tempo do que de costume para terminar a leitura), mas entendi que a essência da obra é justamente essa, apesar de torná-la não tenho como não dizer enfadonha. Mas de que outra forma ele iria conseguir passar toda a magia registrada em suas memórias? Aliás, que memória, hein! Reza a lenda que ele escreveu sete anos de estrada em três semanas, ao passo que, se vocês perguntarem o que eu comi ontem, não saberia responder.
À primeira vista, o livro é uma espécie de diário de viagem de uma galera com sérios distúrbios mentais, principalmente no que se refere à Dean, forte candidato a camisa de força ou a prisão perpétua nos EUA. O grupo vivia basicamente de jazz, literatura, álcool, sexo, drogas e andanças. Entretanto, um olhar mais atento e sensível do fenômeno, revela um estilo de vida heterodoxo em busca de uma liberdade genuína que rompeu com os padrões da época. Ademais, conta também a história de uma estranha, porém profunda, relação de amizade.
São jovens que foram na contramão da estrada de princípios éticos e morais traçados por uma sociedade conservadora (não vamos esquecer que estamos falando de algo que ocorreu no início da segunda metade do século passado, onde os hábitos e costumes eram extremamente rígidos), abrindo com suas loucuras do passado algumas portas para o presente, não se pode negar.
Eles tinham uma forma nada convencional de levar a vida, tinham outras prioridades, valores e sonhos fora dos moldes americanos. Eram felizes conhecendo e curtindo os becos e sarjetas das cidades totalmente desleixados, não tendo nos bolsos o suficiente nem para comer, descolando uns bicos para ganhar um troco, caronas para pagar a gasolina do carro e visitando amigos para terem um teto onde dormir (isso quando não dormiam ao relento ou dentro do carro). O amanhã era sempre uma incógnita. Tudo isso era acompanhado por atitudes inconsequentes, irresponsáveis e até mesmo ilícitas que vão de encontro ao bom senso. Reprovei e me indignei com muita coisa no decorrer da leitura, como por exemplo, a falta de compromisso de Dean com a rabiola de filhos e mulheres que ele deixava para trás sem um pingo de remorso.
Apesar disso, e por mais absurdo e contraditório que possa parecer, o leitor percebe nos relatos de Kerouac que existia amor, pureza, simplicidade e vontade de viver o momento até a última gota na vida dos personagens. É nítido, mas muito confuso de entender, que dirá explicar! Havia inegavelmente escondido em algum lugar ali no meio daquela coleção de comportamentos erráticos, uma espécie de autenticidade nesses jovens, porque vamos combinar, eles foram destemidos, saíram da sua zona de conforto e caminharam rumo ao desconhecido em busca de novas experiências e autoconhecimento sem medo, se livrando dos grilhões que muitas vezes a sociedade ou até mesmo a vida coloca, e isso tudo numa época em que não devia ser tão fácil assumir uma postura tão diferente da costumeira. Se transpassarmos a grossa camada de sujeira, maluquice e ilegalidade, conseguimos encontrar a sutil mensagem. Esses loucos deram início a algo.
Enfim, o livro é bem reflexivo, levanta questões existenciais e filosóficas complexas. É inegável que o feeling aventureiro desperta no leitor a vontade de fazer as malas, mas ele não é para qualquer um. É um bom livro, mas o recomendo apenas para aqueles que estejam realmente dispostos a ir além da camada superficial dos fatos narrados, dispostos a tentar compreender as entrelinhas e entender a representatividade da obra na década de 50. Eu tentei, mas se consegui ou não, sinceramente não sei.
Acho que tenho uma relação de amor e ódio com a obra, porque ela captura brilhantemente o que considero um dos maiores prazeres dessa vida, que é viajar, se conhecer e conhecer outras culturas e pessoas na companhia de gente querida, guardando na memória todos aqueles momentos incríveis, mas por outro lado, não comungo com algumas atitudes dos personagens, atitudes essas que vão de encontro aos meus princípios e valores. No entanto, nem por isso deixei de me divertir com história desses meninos.
P.S Recomendo ao leitor retornar a introdução de Eduardo Bueno após a leitura completa da obra.