O Pícaro Russo

O Pícaro Russo Gary Shteyngart




Resenhas - O Pícaro Russo


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jota 06/06/2021

BOM: livro de estreia de Shteyngart é uma salada russa com tempero americano e o resultado dessa mistura nem sempre é lá muito fácil de ser digerido
Lido entre 02/05 e 05/06/2021. Avaliação da leitura: 3.5/5.0

Você sabe o que é marxixe (em itálico, que não dá para grafar aqui)? Um marxista que fuma ou ingere haxixe. E esse é apenas um dos vários trocadilhos que encontramos nesse volume, justamente num capítulo cujo título, A Insuportável Brancura de Ser, faz uma brincadeira com o famoso livro do tcheco Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser. Também mexe com outro autor, o de Anna Karênina num capítulo intitulado E Se Tolstoi Estivesse Errado, referindo-se àquela sua conhecida afirmação de que todas as famílias felizes se pareciam, mas aqui não. E por aí a coisa vai... Mas vamos ao começo de tudo, ao autor dos gracejos. Nascido na antiga Leningrado em 1972, cidade russa que voltou a se chamar São Petersburgo em 1991, Gary Shteyngart mudou-se com seus pais para os Estados Unidos ainda criança. Ele é considerado pela crítica americana um dos principais autores da nova geração de escritores do país por livros como O Pícaro Russo, Absurdistão, Uma História de Amor Real e Supertriste e outros.

Mesmo tendo algumas obras traduzidas para o português e sido um dos escritores convidados para a FLIP em 2012 não me parece que ele seja assim tão conhecido e lido no Brasil. Shteyngart esteve outras vezes no país, gostou imensamente de Salvador e se apaixonou por nossas capivaras, disse que queria ter algumas como animais de estimação. De volta ao livro, O Pícaro Russo, título um tanto diferente do original, The Russian Debutant’s Handbook (algo como O Manual do Iniciante Russo – ou Estreante, em alguma coisa ou profissão), “é uma comédia e tragédia de um judeu russo na América” (como consta da capa brasileira) nos anos 1990. Grosso modo, a história é a seguinte: o personagem central, Vladimir Girshkin, um anti-herói por excelência, acaba de fazer 25 anos e sua vida está longe de ser aquela com que sonhou quando deixou a Rússia logo após a queda do comunismo soviético. Poucos de seus sonhos americanos se realizaram: ele atua num trabalho que considera deprimente (é funcionário de uma agência que dá suporte a imigrantes), seus pais estão decepcionados porque ele não foi capaz de arranjar um bom futuro para si, namora uma mulher por quem não está apaixonado e que não é exatamente uma beldade, tem amigos pouco exemplares aos nossos olhos. Alguma coisa precisa mudar em sua vida... E são cerca de 450 páginas de leitura para vermos isso ocorrer.

Alguns resenhistas americanos afirmaram que esse romance picaresco (daí o título brasileiro) caminha na mesma trilha de clássicos como Gogol e Dostoievski e de modernos como Henry Miller e Philip Roth. Já a Entertainment Weekly foi bem longe ao afirmar que “Shteyngart supera Saul Bellow em ritmo e Philip Roth em engenhosidade...” Mesmo dando certo desconto pelo exagero da Entertainment, O Pícaro Russo tem lá suas qualidades, mas não é uma escrita assim tão cativante quanto a dos livros de Miller, Roth, Dostoievski ou Gogol. O que se sabe de fato é que Shteyngart considera Woody Allen e Philip Roth dois grandes mestres, conforme confessou a Morris Kachani, da FSP em 2014: “Allen me ensinou o humor, e Roth me ensinou a tristeza. Com eles, minha educação está completa.” Também é possível encontrar leitores estrangeiros que creem que O Pícaro Russo tem certo parentesco com o livro de John Kennedy Toole, Uma Confraria de Tolos, que entre eles se tornou um livro cult, coisa que até o momento não parece ter ocorrido com o livro de Shteyngart. Contudo, não sei se os dois livros dialogam entre si porque não li Toole.

Penso que seria possível comparar as aventuras de Vladimir Girshkin com as do anti-herói criado por Saul Bellow para As Aventuras de Augie March, que li há algum tempo, e que agora me pareceram bem mais interessantes e cômicas do que as narradas por Shteyngart. E diferentemente de Vladimir, Augie é simpático, então lemos o livro de Bellow com mais envolvimento do que o de Shteyngart. Prosseguindo: um dia, saindo de sua rotina em Nova York e viajando para a Flórida por indicação de um amigo, um tal Baobab, Vladimir se envolve numa perigosa aventura em que quase termina estuprado por um bandido catalão. Ele o persegue até Nova York para matá-lo porque Vladimir pode revelar a outras pessoas fatos sobre sua sexualidade. A solução é radical: fugir para bem longe, ir embora da América, voltar para o leste europeu, de onde saíra doze anos atrás com os pais e muitos sonhos. É o que ele faz e vai parar em Prava, na fictícia Republika Stolovaya, que mesmo parecendo uma cidade russa, se assemelha muito mais a Praga, a capital tcheca, não apenas no nome, mas em praticamente tudo. Ali ele se relaciona com diversas pessoas, especialmente com um gentil mafioso russo, um biznesmanski, como dizem em Prava, ou seja, um homem de negócios (negócios escusos, diga-se), que tem planos para administrar uma pirâmide financeira destinada a dar golpes em canadenses ricos e descuidados. Outros mafiosos russos, sujeitos bastante perigosos que vivem na cidade, estão envolvidos com prostituição, tráfico de drogas e armas etc...

Por outro lado, Vladimir faz amizade com um poeta e escritor local, de quem vai se tornar bastante próximo, Perry Cohen, de ascendência judaica como ele. No dia em que se conhecem num bar eles tomam uma cerveja chamada Unesko, pois é. Também se envolve sentimental e sexualmente com uma garota americana que vive na cidade, a bela Morgan, e coisas e situações estranhas vão continuar ocorrendo, como ocorriam quando Vladimir vivia na América, sempre de modo superlativo. Moacir Amâncio, então professor de língua e literatura judaica na USP, que escreveu a apresentação do livro na edição brasileira, que é de 2006, diz que O Pícaro Russo não é um romance de formação, “em que alguém passa por várias etapas até atingir a maioridade espiritual”, mas um romance de deformação, em que “o protagonista entra mais no terreno do humor do que do patético – o que é ótimo para o romance e, claro, para o leitor.” Tudo bem, mas ao contrário de Amâncio, Pícaro... me pareceu muito mais recheado de inventividade, imaginação, erudição e patetices do que propriamente de humor: nessa comparação estou pensando em, por exemplo, Complexo de Portnoy, de Roth, que é um livro fabuloso, que li e reli (acho que não conseguiria reler Shteyngart).

Ou então, caso Shteyngart fosse mesmo um discípulo de Woody Allen como argumenta, talvez a narrativa ficasse mais engraçada, mais interessante. De todo modo, humor judaico não é algo assim tão fácil de ser assimilado por gentios, acontece. Por isso, são inúmeras as notas de rodapé do volume, não apenas para esclarecer algumas anedotas, trocadilhos e citações, também para que compreendamos certas referências às culturas judaica, russa e americana. Essa facilidade para com o leitor ilustra, de fato, a dificuldade que o personagem tem para encontrar sua própria identidade no meio dessa tríplice identidade, como salientou um leitor. Mas e eu com isso? Eu queria apenas me divertir um pouco nesses tempos de pandemia e insanidade governamental. Como diz um personagem a Vladimir a certa altura, pensando nos negócios dele: “Você é ao mesmo tempo o palhaço e o dono do circo.” Talvez essa frase possa ser igualmente aplicada a Gary Shteyngart, que deve ter se divertido muito mais escrevendo O Pícaro Russo do que nós lendo seu livro de estreia nas letras americanas.
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Gillian.Meira 29/05/2016

Ironia do destino.
Este livro brinca com a hipocrisia ou desgraça do destino. Sem sobras de dúvidas uma ótimo periscópio para se olhar os conflitos da vida que se politizam com as questões ideológicas em um nível que contamina até o sentimento de mundo dos personagens. Um bom livro, que revela que Aristóteles estava certo, no final tudo é política.
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