andy_Pendiuk 23/09/2023
Desassossego
Esse livro me fez sentir como se eu me sentasse na mente de outro alguém e observasse seus pensamentos e sentimentos se derenrolarem. Sempre me surpreendende como os humanos são tão similares em seu íntimo, como nos identificamos com os pensamentos de alguém que viveu tantos anos antes como se fossemos amigos. Me encanta também conhecer pensamentos diferentes dos meus, ler é exercitar a empatia.
Fernando Pessoa descreve com delicadeza a solidão, a tristeza, a paz e o sossego (ou a falta dele). O livro não segue uma linha contínua, é mais como se fosse uma coletânea de devaneios, como uma linha de pensamento, que uma ideia leva à outra e assim por diante.
Esse é um daqueles livros para serem lidos várias vezes durante a vida, que apesar do livro ainda ser o mesmo, você não é mais a mesma pessoa e entende aquelas palavras de uma forma diferente.
Por vezes a leitura é cansativa por ser bem densa e com uma linguagem pouco usada em nosso dia a dia, mas a escrita é linda e retrata o mundo pela lente do autor de uma forma muito singular, esse livro é acima de tudo, o relato de um observador sonhador, suas impressões de si mesmo, do mundo e das pessoas que nele vivem. Um observador tão dedicado que prefere observar e imaginar do que viver e interagir com o ambiente à sua volta, como ele explica no seguinte trecho:
"Abstendo-me inteiramente da ação, desinteressando-me das Coisas, consigo ver o mundo exterior quando atento nele com uma objetividade perfeita. Como nada interessa ou leva a ter razão para alterá-lo, não o altero."
Gostei muito, em minha opinião poderia ser um pouco mais curto, o autor se repete diversas vezes, usa muito as mesmas palavras (perdi a conta de quantas vezes li a palavra "metafísica"), o que deixa a leitura maçante em alguns momentos, mas tem vários tesouros escondidos nesse livro que valem muito a pena, lhe garanto que você terá vontade de salvar vários trechos desse livro para reler depois, alguns dos meus favoritos:
"Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político."
"Consideremos um dono de escritório. Ele tem obrigação de poder dispensar toda a gente; tem a obrigação de saber escrever à máquina, de saber contabilidade, de saber varrer o escritório. Que a sua dependência dos outros seja, portanto, só uma necessidade de não perder tempo, e não uma necessidade da incompetência própria."
"O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu- lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos. Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver. O criador do espelho envenenou a alma humana."