3.0.3 15/01/2024
Um incêndio na caverna da alma
“Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o Céu.”
O Livro do desassossego (1982), de Bernardo Soares, que é tido como um “semi-heterônimo” de Fernando Pessoa (1988-1935), dita um andamento íntimo que jamais descansa, pois a obra trata das inquietudes do sujeito dentro do espaço-tempo que frequenta. Embora os temas abordados na obra se assemelhem a um diário, o livro – que reúne aproximadamente quinhentos trechos em prosa e que foi publicado mais ou menos cinco décadas após a morte de Pessoa – é o que mais se parece com um romance.
Trabalhando como auxiliar de guarda-livros em Lisboa, Bernardo Soares produz uma narrativa onde – pode-se dizer – não há fatos, sequências lógicas e noção temporal clara. Desilusão, melancolia e tédio são os tons que prevalecem na obra, que transita entre a dimensão do mundo concreto que é vivido na rua dos Douradores à dimensão do mundo abstrato que é sonhado na folha de papel. Assim, entre o múltiplo e o uno, Bernardo Soares empunha sua caneta para explorar as ideias do que é irreal e real, do tudo e do nada.
O Livro do desassossego é uma antologia de reflexões profundas sobre a vida e seus desdobramentos. Nele, há diversas passagens que colocarão em xeque as nossas condutas e a nossa visão de mundo. A inquietação que o meio social e suas opiniões suscitam, a singularidade de Bernardo Soares contra a pluralidade do que o rodeia, as mudanças e os movimentos literários e políticos portugueses, a inquietação das palavras – entre outros aspectos fundamentais – são alguns temas abordados e que, certamente, também nos despertam profunda inquietação.
“Vivo de impressões que me não pertencem, perdulário de renúncias, outro no modo como sou eu.”
É uma obra que reúne tudo o que pertence a todos ao abrir caminho na densa floresta de si. Sonhando, mas sonhando com o intelecto, Bernardo Soares avança contra as estruturas do próprio corpo para flexionar sensações e pensamentos tão comuns a todos, ou seja, sublime arte, que se escora no mais escuro de nós, no mais complexo, dentro da neblina oscilante, o particular transformado em universal. Aqui, tudo testemunha tudo, e todo o testemunho se apresenta para tirar dessa banalidade da vida a transcendência que pulsa no mais íntimo do humano. Compreende-se que é uma obra basilar onde tudo se encontra e nada se perde (ou nada se encontra e tudo se perde), onde se busca no espaço a metafísica da vida.
Cintila a cada palavra e em todo o fragmento a astúcia daquele que durante toda a vida atentou a si e às circunstâncias do mundo. Embora julgue o homem de ação e o de sonho, Bernardo Soares sustenta uma vontade velada de se equiparar a eles, pois a aflição de não saber como é a real aparência da vida é gatilho de profundo desassossego. Os traços existencialistas ao longo dos fragmentos são bem perceptíveis, fazendo com que a obra também possa ser lida como um tratado de filosofia.
O Livro do desassossego provoca uma constante inquietação física. A angústia se materializa num asco que transborda pelos campos da sensação, do corpo e do intelecto para revelar a cada trecho os múltiplos lados do ser humano e dimensionar a busca do sujeito pela compreensão de si e da vida. Para isso, a obra explora sentimentos de isolamento, inquietude, abstração e alheamento, operando em uma frequência de intensa introspecção.
“Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade.”
Ao pensar os aspectos incompreensíveis da vida num estilo de escrita tão fragmentário e único, notamos que a precisão linguística de Fernando Pessoa é tão assombrosa que é capaz de transformar a sua prosa em poesia. Minerador de gemas, a sua astúcia é a de um genuíno alquimista da palavra – e o Livro do desassossego revela isso com contundência, transformando-se em uma referência da literatura mundial. Grandeza transformada em princípio, incorporada de todos em si, Pessoa é um arquiteto de labirintos, traçando a quantidade de mistérios que em sua época desperta o espírito universal de todas as épocas – linguagem do espírito para o espírito, sintetizando matizes, sons, ecos, fragrâncias, pensamentos e sensações que puxam sensações e se multiplicam. Fernando Pessoa é, de fato, o gatuno do fogo.
É um livro que nos marca de forma tão singular que levamos a sua filosofia e a sua literatura para a vida. Mas cabe ressaltar que a profundidade dos pensamentos de Pessoa demanda o amadurecimento do leitor, que certamente precisará enfrentar a obra diversas vezes, pois uma única leitura é insuficiente. Não compreendemos o que fazemos de nós. Transformamo-nos em nossas sensações à medida que sentimos profundamente. Se intuímos que aquele que pensa de forma racional não é um ser liberto, mas um ser que habita outro tipo de prisão, o Livro do desassossego faz desabar as estruturas que sustentam a nossa vida.
Na verdade, o desassossego, que oscila de uma leitura para a outra, de um tempo para o outro, é tão imenso e suficiente que sem ele o mundo não seria o mesmo. É um desassossego complexo e profundo. O motivo real disso tudo permanece incompreensível: a leitura nos desassossega e incendeia. E esse é com precisão o sentido das chamas. Não seremos mais os mesmos ao ressurgirmos do outro lado daquilo que nos incendeia. Na verdade, quando isso acontecer, ainda desconfiaremos. Certamente será complexo compreender como sobrevivemos às chamas ao transpô-la.
Viver é desassossegante. Nota-se nos trechos da obra que Bernardo Soares foi um observador ativo dos movimentos humanos. Navegador da palavra. Burilador da vida. Ele abre veredas para que vivamos além de nossos pensamentos, além de nossas sensações e, sobretudo, além de nós mesmos, visto que é capaz de revelar as zonas mais incógnitas de nós, com consciência ímpar. Lentamente, até perceber que se viveu todo um ciclo existencial em algumas páginas, assim devemos ler o Livro do desassossego. Com a sua sublime linguagem, faltam-nos palavras para dimensionar a potência dessa obra.
“Como um espetáculo na bruma aprendi nos sonhos a coroar de imagens as caras do quotidiano, a dizer o comum com estranheza, o simples com derivação, a dourar, com um sol de artifício, os recantos e os móveis mortos e a dar música, como para me embalar, quando as escrevo, às frases fluidas da minha fixação.”