Flávia Menezes 13/04/2022
?E VOCÊ DESCOBRE QUE NO FINAL DO ARCO-ÍRIS, ERA SÓ CEREAL.
?1984?, do autor britânico George Orwell, publicado pela primeira vez em junho de 1949, é uma obra atemporal, e que mexe conosco de tal forma, que cada capítulo que encerramos, gera uma avalanche de discussões internas.
De fato, esse livro é um convite para trazermos um pouco dessas discussões para a nossa realidade, e repensarmos sobre qual papel estamos assumindo como cidadãos (tanto quanto em outros ambientes, tais como o organizacional e na vida privada). Será que estamos nos posicionando ativamente e com sabedoria? Ou será que somos apenas aqueles reclamões que gostam de falar, mas não fazem nada para mudar?
São vários os pontos nevrálgicos nos quais esse livro toca, e a angústia que a leitura vai provocando é algo inevitável. Afinal, ler sobre um governo manipulador que banaliza a educação e os direitos humanos, nos soa como algo tão próximo da nossa realidade, que não tem como encarar a leitura como uma mera obra de ficção.
Para mim, as partes mais provocativas da história foram os diálogos. A intensidade das discussões e as suas contrariedades, confesso que foi aí que a narrativa me prendeu. Na verdade, o autor me encantou bem mais pelos detalhes, do que pelo todo.
O que me faz querer falar logo da personagem da Júlia. Sua entrada na história foi o elemento essencial. Ela é a personagem que nos tira da descrença, para mostrar um caminho possível nessa loucura toda. E a forma como ela e Winston se unem, mesmo sendo tão diferentes, foi uma tacada de mestre do autor. As discussões entre os dois, com cada um argumentando sobre o seu ponto de vista, foram riquíssimas, e mostraram como duas pessoas que divergem, também podem conviver em harmonia, mesmo tendo pontos de vista contrários. Não é brilhante isso?
Um outro ponto que me conquistou, foi o autor atribuir a Júlia o despertar dos sentidos (do paladar, dos aromas, do tato) do Winston, fazendo com que ele acessasse suas memórias afetivas. Isso foi tão tocante, porque essa é uma forma terapêutica de tirar uma pessoa das suas preocupações excessivas, para trazê-la de volta ao presente.
E é no presente que estamos verdadeiramente vivos. Quanto mais nossa mente estiver no passado, maior será o risco de sofrermos de uma depressão. E quanto mais nossa mente estiver no futuro, maior será o risco de sofrermos de ansiedade e fobias. O presente é o melhor lugar para estarmos, pois é nele que encontramos todas as ferramentas para enfrentarmos as nossas batalhas.
Aliás, por falar em batalhas, Júlia também dá uma verdadeira aula sobre a importância de escolhermos bem as nossas lutas. Afinal, é aquela velha história, talvez você não possa erradicar a fome do mundo, mas você pode ajudar a matar a fome de uma pessoa da sua cidade, nem que seja por um único dia. Talvez você não possa promover uma reforma significativa na educação do país, mas você pode incentivar alguém a ler um livro, e depois, debater e trocar ideias, enriquecendo ainda mais a leitura de ambos. O que pode parecer uma gota no oceano, pode mudar e até salvar uma vida.
Winston também tem sua importância na história, quando nos lembra de que a manipulação ao passado de uma nação, à banalização de uma língua, é algo que fere a identidade de um povo. Mas sejamos honestos aqui, nós sabemos que nossos livros de história e as disciplinas ensinadas na escola, também foram manipuladas pelo nosso governo ao longo dos anos. Algumas coisas se perderão para sempre, e não farão tanta diferença. Já outras, trarão um prejuízo incalculável. Mas nem assim, a vida irá parar. Isso é fato!
É claro que em ?1984?, tudo é intensificado pela lente de aumento a qual a história é contada. Mas são reflexões importantes a serem feitas, trazendo um pouco para a nossa realidade, para sabermos discernir sobre o que podemos fazer, daquilo que está totalmente fora do nosso alcance.
E foi neste ponto, que o Winston se perdeu. De fato, suas questões eram nobres. Só que para aquele exato momento, elas não eram urgentes. Assim como o Partido, Winston também tinha o foco em uma luta que não levava em conta o outro, mas somente aquilo que ele acreditava. O que me fez ter uma leitura do final muito diferente de todas as outras que encontrei aqui no Skoob.
Para mim, Winston não se rendeu, e nem se curvou ao Partido. Ele se reconheceu nele! Olhando para o rosto do Grande Irmão, tudo o que ele viu, foi o seu próprio rosto. Então, ele descobriu que tinha morrido, porque o Winston não existia mais. Ele também era o Grande Irmão. Porque ambos lutavam por suas causas sem pensar nas necessidades do coletivo. Para ambos, não existiam os outros. Mas somente suas crenças. E aí... nessa briga de forças... que eles se tornaram um só. Porque lá no fundinho, eles eram iguais.
Não foi isso que Winston fez, quando julgou que ele era mais inteligente por lutar contra a reforma da novilíngua, enquanto os proletas falavam de suas vidas pessoais? Aliás, não era o mesmo que o Partido fazia querendo esvaziar as pessoas de sentimentos, de sua subjetividade, para que se voltassem apenas ao Grande Irmão? Não estava Winston também desconsiderando os sentimentos dos proletas?
Aliás, essa é a parte que mais me incomodou na história. A lealdade a alguém vem do amor por ela. Da identificação. E o Partido era claro quanto querer retirar todos os interesses das pessoas, para que elas amassem unicamente ao Grande Irmão. Só que o amor, a lealdade, a identificação passam pelo crivo do sentimento. Impossível separar uma coisa da outra.
E transformar as pessoas em simples autômatos, em pessoas sem vontades, que só se submetem, que graça teria em ser coercitivo e exercer poder sobre alguém que nem sequer tentará resistir? Nenhuma! Então, tirar os sentimentos das pessoas não faz sentido. Se elas não são contrárias, se não lutam, se não se rebelam, não existe poder, porque não existe ninguém a quem coagir, a quem dominar. E que graça teria? Tão importante ter um rebeldezinho pra dominar!
Outro ponto sem nexo, foi o motivo de se ter um Departamento de Ficção, confeccionando romances, se você quer banir emoções. Porque quanto a pornografia, okay. Até porque já foi comprovado cientificamente o efeito nocivo do consumo excessivo de pornografia, que faz com que as pessoas sejam objetificadas, dessensibilizando aquele que assiste a ponto de a pessoa perder o interesse no outro, e usá-lo apenas para uma satisfação pessoal e momentânea. Mas já os romances...
Enfim... Vejo essa obra como uma fonte poderosa que nos ensina muito sobre quais as lutas escolhemos travar nessa vida. Sobre ter sabedoria no agir, fazendo aquilo que posso, tanto quanto tendo humildade para reconhecer até onde posso ir. Caso contrário, as lutas se tornam improdutivas, e vamos ser honestos? A vida não é sobre isso. Poder, controle, crenças individuais, tudo isso é vaidade e só alimenta a arrogância. E no final...
Aliás... foi exatamente pensando no final que eu escolhi esse título para a minha resenha. Porque ele me fez pensar no filme ?Click?, onde o personagem vivido pelo ator Adam Sandler ganha um controle remoto que controla o tempo, mas ao final do filme, ele percebe que esse controle é pura ilusão. As coisas continuam acontecendo do jeito que tem que acontecer, e quanto mais você tenta controlar, mais você perde controle.
Como o que aconteceu com o pobre Winston, que depois de tanto correr, descobre que no final do arco-íris, era só cereal!