Lauraa Machado 05/04/2021
Excepcional!
Eu sabia exatamente o que esperar desse livro. Além de já ter lido sobre o caso que o inspirou, sobre o cantor R. Kelly, já tinha procurado bastante sobre ele e estava bem ansiosa para ler. Li praticamente de uma vez só, tentando ao máximo passar por tudo de ruim de uma vez, mas não consegui. Não tem como. Enchanted passa por muita coisa absurda que tem consequências por um bom tempo depois.
Antes de falar mais, aqui vão os gatilhos do aviso do livro: menções de abuso sexual, estupro, abuso de menor, sequestro e vício de opioides.
O livro é separado em quatro partes, e talvez eu dê alguns spoilers sobre o ritmo e a separação do livro nelas. Não vai ser nada claro e exato, não vou contar o que acontece, mas você pode querer evitar.
Durante as três primeiras partes, a história é contada no passado com alguns capítulos de 'agora', quando o Korey Fields já está morto. Acho que ter começado com ele morto foi uma ideia brilhante. Saber o que aconteceria com ele me ajudou a ficar menos ansiosa, ainda que tivesse ficado bastante mesmo assim. É essencial saber que vai ter um fim, ainda que não seja tão bom, e o nível do ódio que eu senti por Korey, até mesmo depois de ele estar morto, foi absurdo; mas sei que teria sido bem pior se eu ainda não soubesse como ele 'acabaria'.
Gostei muito da primeira parte, de como a autora mostrou que Enchanted era apenas uma garota normal e que a relação dela com Korey no começo tinha, sim, coisas boas. Muitas pessoas acham que relacionamentos abusivos dão sinais desde o começo de que são tóxicos, e dão sim, mas eles são bem sutis e muitas vezes esses sinais são ofuscados pelas coisas boas. Claro que o relacionamento dela com ele era ruim só pela diferença de idade, mas os detalhes podres das falas dele, das atitudes, foram muito bem construídos e desenvolvidos. Ele fala "as coisas certas" com as palavras erradas, e a posição dele em relação a de Enchanted e seu sonho de se tornar cantora só contribuiu para o que ele queria.
Eu esperava que a parte dois fosse a pior, então li de uma só vez. Na verdade, li a um, a dois e mais uma parte da três no mesmo dia, na mesma sentada. Sabia que seria bem difícil passar por esse abuso absurdo junto com Enchanted, então queria ler rápido e sair logo dele. Mas não tem fim. Não é algo que simplesmente dá para dizer que acabou e pronto. As consequências são maiores e são pesadas e duram indefinidamente. Mas a parte dois foi bem difícil em si só também.
Acho que a autora foi brilhante aqui também. Essa parte, aquela em que Enchanted teoricamente mais sofre na mão de Korey, é contada de um jeito mais rápido, mais evasivo, pulando dias, momentos, e resumindo algumas coisas com metáforas. Para mim, foi ideal. Se ela tivesse aprofundado mais, se tivesse sido mais direta e clara, teria sido ruim demais. Como escreveu, já está desesperador e agoniante! Eu não estava aguentando, lendo com a única missão de chegar na próxima parte, torcendo por ela o tempo inteiro. Imagina ela!
Ao chegar na parte três, achei que fosse finalmente ficar tudo bem. Mas as consequências de um abuso podem ser até piores do que ele, porque elas duram por muito mais tempo. Nessa parte, o gaslighting de Korey ficou ainda mais em evidência e até comecei a duvidar do que eu tinha lido, voltando em algumas partes para me certificar de que não estava louca. É aqui que a autora aborda uma grande parte do problema: a sociedade culpar a vítima, ainda que ela seja menor de idade, ainda que o cara tenha mais do que dez anos a mais que ela, e como a polícia e as pessoas à sua volta podem só contribuir para piorar tudo que ela sofreu.
O gaslighting foi incentivado por outros personagens, por outras pessoas que ouviam o relato de Enchanted, e sua sanidade foi questionada. Eu questionei junto com ela, questionei a minha, tive até medo de ter acreditado em algo que podia ser só coisa da cabeça dela. Essa parte, essa abordagem do gaslighting, para mim, foi excepcional. Muita gente pode achar que é impossível chegar a questionar o que você mesma fez e falou, o que você sabe que é verdade, mas foi isso que fizeram com Enchanted. Acho que, se você não consegue se simpatizar com ela, não consegue se colocar em sua pele ao ler este livro, tá precisando de uma boa dose de empatia e humanidade.
A parte quatro é quando a história do passado se junta ao presente e todos os capítulos são de 'agora'. Foi também a minha favorita. O mistério de quem matou Korey é bem fácil de solucionar, mas essa nem é a questão do livro. A questão é perceber como o sistema todo é uma maré que impede Enchanted de nadar até a superfície (e ela teria adorado a metáfora). É isso que é desesperador, foi por isso que eu fiquei torcendo, por Enchanted encontrar um jeito de provar que é inocente, de não ter que ir para a cadeia depois de tudo que sofreu com Korey, de salvara a si mesma.
E o final. A última revelação, da última página? Excepcional.
Até outras questões secundárias da história foram muito bem desenvolvidas, como a parte da Gab e o Derrick. Amei as referências ao mar, à Pequena Sereia, à música. Amei também a relação da família de Enchanted, seus pais e seus irmãos, e só queria proteger todos eles do mundo. O mais difícil é pensar em todas as garotas que passaram por isso de verdade, na vida real, e não em um livro; e pensar em todas as consequências de seu abuso que permanecem até hoje.
O livro é impecável, admito. Esperava que fosse excelente, mas ainda assim me surpreendeu. Claro que não é um livro para todo mundo, é pesado emocionalmente, então você precisa pensar primeiro se é do tipo de coisa com a qual consegue lidar normalmente ou se precisa estar em um momento muito bom para ler - ou até se nunca deve ler. Eu acho que é uma leitura que vale a pena, mas cada pessoa sabe sobre si. Estou muito feliz de ter ganhado de presente de uma amiga e ainda mais por ser um livro tão excelente. É definitivamente um livro do qual nunca vou me esquecer.