Matheus Penafiel 09/03/2017
Qualidades de narrador
No ensaio O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, o filósofo Walter Benjamin faz considerações sobre aquilo que compete ao narrador analisando a obra do escritor russo Nikolai Leskov. Começa por caracterizar a narrativa como uma faculdade que nos parece segura e inalienável por se tratar de um intercâmbio de experiências. Ele precisa ainda mais o que compreende ao dizer que “o senso prático é uma das características de muitos narradores natos”. Fala sobre Gotthelf que dá conselhos de agronomia através de sua narrativa, e sobre Nodier que versa sobre os perigos da iluminação a gás.
Porém, Benjamin não pretende compreender a atividade narrativa desde essa perspectiva limitada. Ele observa que “Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos”. O narrador de Walter Benjamin parece, no entanto, muito ligado às fábulas, nas quais, ao final, se apresenta uma moral da história.
Outro escritor russo Anton Tchekhov, porém, parece se dirigir na contramão dessa concepção de narrador, e O beijo e outras histórias é exemplo disso. O livro é constituído por seis contos, sendo eles O beijo, Kaschtanka, Viérotchka, Uma crise, Uma história enfadonha e Enfermaria nº6. Comecemos, portanto, pelo primeiro dos contos.
O beijo
O título por si só nos é convidativo. “O beijo”, dito assim, parece único e derradeiro. E desde logo começamos a nos perguntar qual a história por trás desse beijo. Já o enredamos nos ares do mistério. O conto começa por narrar a chegada de seis baterias de artilharia na aldeia de Miestietchko, onde montariam acampamento. Lá chega um cavaleiro que os convida, a mando do Tentente-General Von Rabbek, a irem à sua casa tomar chá. É quando já estão na casa que somos apresentados ao herói do conto, Riabóvitch. Dentro da casa do general, Riabóvitch, já entediado para jogar bilhar com outros oficiais e tímido demais para cortejar alguma moça, percorre algumas salas em busca do salão em que estava. Se perde e, na tentativa de encontrar o caminho de volta, entrou num escritório escuro, onde ouviu passos apressados e o frufru de vestido. Então uma moça o beijou, sem que Riabóvitch pudesse saber quem era.
Kaschtanka
Nesse conto relata-se um período da vida de Kaschtanka, uma cadela mestiça, mistura de basset e vira-lata, em que ela se perde de seus donos, Luká Aleksândritch. Ele é um marceneiro que odeia a cadela. Chega a lhe dizer que deseja que morra, que é um inseto. Mas a leva consigo durante um longo percurso, que vai desde a taverna, a casa da irmã, a casa do compadre e até o retorno à taverna, já de noite. Um regimento de soldados passa por perto da taverna tocando música, o que deixa a cadela assustada e começa a uivar. Agitada como estava, corre para o outro lado da rua. Quando passa o regimento, ela retorna à calçada onde estava seu dono, mas já não o encontra, ficando desesperada a sua procura.
Viérotchka
“Acostumei-me a vocês que nem um cachorro perdigueiro”, é o que diz Ivan Aleksiéitch Ognióv ao se despedir do hospitaleiro Kuznietzóv, na casa de quem dormiu muitas vezes, conforme nos diz em seguida. Era grato também a sua filha, Viera Gavrínovna, ou carinhosamente Viérotchka, quem não encontrara para se despedir. No entanto, a moça o esperava fora da casa, e se oferece para acompanha-lo até a pontezinha. Durante a caminhada, o homem confessa que, em vinte e nove anos de vida, jamais tivera um romance.
Uma crise
Os jovens Meyer e Ríbnikov, ambos estudantes, o primeiro de Medicina e o segundo de Belas-Artes, convidam um amigo, o estudante de Direito Vassíliev, ao Beco de S…, lugar para se aventurar com as “mulheres decaídas”. Vassíliev é resistente ao convite, mas cede aos amigos. Ainda que na primeira casa tenham sido recebidos com hospitalidade por três moças, Vassíliev permanece incomodado com o ambiente, pensando que é tudo comum e desinteressante, podre e estúpido.
Uma história enfadonha
Esse conto, curiosamente, não possui nada de enfadonho. Mas não posso negar certa proximidade com o tema. O personagem que narra a história é o professor Nicolai Stiepanovitch, possuidor de inúmeras condecorações e conhecido por toda pessoa alfabetizada. O narrador descreve os diferentes aspectos de sua vida, o que se torna interessante desde a perspectiva de primeira pessoa, pois compartilha seus juízos com seus leitores. Seu dia começa com a rotineira visita de sua mulher em seu quarto, após toma chá, veste-se e se dirige para ministrar aula na universidade, atividade que já duram trinta anos. É recebido pelo porteiro e seu xará Nicolai, por quem o notório professor guarda grande estima.
Enfermaria nº6
A enfermaria nº6 nos oferece duas perspectivas. Nos permite o contato e a discriminação entre os loucos e os sãos. Possui dois personagens centrais, Ivan Dmítritch e o Dr. Andréi Iefímitch Ráguin, a partir dos quais o narrador explora essa duplicidade, que nos faz questionar quem deveria estar isolado na clausura.
As narrativas de Tchekhov
Se, por um lado, Walter Benjamin sugeria que o narrador deve oferecer respostas, um aprendizado, um intercâmbio de experiências, por outro lado Anton Tchekhov acredita ser função da narrativa a interrogação. Chegou a dizer é certo “exigir que o artista tome uma atitude inteligente em seu trabalho, mas você confunde duas coisas: resolver um problema e enunciar um problema corretamente. Apenas o segundo é obrigatório para o artista”.
O autor não nos fornece resposta, mas desenvolve a narrativa de modo à sempre explorar lacunas, transmitindo ao leitor algum questionamento. Alguns deles são apenas sobre o enredo, como é o caso de O beijo, no qual ficamos intrigados com a identidade de quem beijara Riabóvitch. Tchekhov falha, porém, ao nos dispor o acervo de pretendentes: pouco fala das possíveis mulheres, o que não permite intimidade com alguma delas, tampouco eleger alguma favorita. Mas mantêm, apesar disso, as dúvidas sobre como deve agir o oficial.
Kaschtanka e Viérotchka são melhor exemplo desse esforço do narrador. Seus finais certamente nos deixa desgostosos, inquietos, intrigados e com a suspeita de que agiríamos diferente do que as personagens. No entanto, se nos permitirmos a mesma introspecção dos personagens dos contos, poderíamos nos questionar com louvável honestidade: será que faríamos diferente?
Os três últimos contos, Uma crise, Uma história enfadonha e Enfermaria nº6, proporcionam outro tipo de questionamento, mais profundo se bem analisados. Tchekhov constrói um olhar sobre duas facetas da sociedade. Em Uma crise é a dos estudantes com a das “mulheres decaídas”, em Uma história enfadonha é a do porteiro em contraposição a um colega cientista, ou ainda da família de Nicolai Stiepanovitch em contraste com a de sua protegida Kátia, e em Enfermaria nº6 o questionamento sobre quem deveria ocupar as celas do manicômio. Sem nenhuma surpresa, os questionamentos desses três contos permanecem atuais.
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