Paulo 03/07/2022
1 - "A Sombra da Colina do Rei" (de Diego Guerra)
Avaliação: 4 estrelas
Erin e Emmond são irmãos muito diferentes um do outro. Enquanto Emmond é mulherengo e amável, Erin é mais sério e sisudo. Quando Emmond decide ser o prelado do rei para uma região recém-colonizada, seu irmão inicialmente é contra, mas entende que ele precisa seguir seu próprio caminho. Mas, quando ele não tem mais notícias de seu irmão, Erin vai até a vila para entender o que aconteceu com ele. É então que lhe é contada uma estranha história sobre uma bruxa que vive em uma floresta próxima e seu contato com demônios que seguem suas ordens. Apesar de Erin imaginar que se trata de algum tipo de golpe dado pelos moradores da vila, ele segue para a floresta investigar o que aconteceu com Emmond. É então que ele irá se deparar com uma situação insólita que o levará a questionar sua própria força de vontade e o levará ao limite de suas forças. O que ele encontrará nesta floresta? Será que seu irmão ainda vive ou estará perdido para sempre?
Esta é uma história que se passa no universo do livro O Teatro da Ira, criado por Diego Guerra. Mas, é tranquilo ler o conto sem ter o menor conhecimento sobre o mundo. A forma de contar a história segue bastante a linha do autor: tensa, com descrições que nos ajudam a entender os nossos arredores e uma boa noção daquilo que o personagem está sentindo. Gosto de como a gente não faz a menor ideia sobre o que está acontecendo com precisão. Apesar de ser um universo fantástico, tudo tem os pés bem firmados no chão. A magia é algo duvidoso; ela pode ou não estar acontecendo, e quando acontece, surge de forma surpreendente. O autor é bem econômico com os diálogos, se focando mais em descrever os espaços e ações. Para esta história em específico, cria um contexto bem estranho e distorcido, capaz de nublar as nossas percepções sobre o que está ao nosso redor. É um sentimento parecido com o que Erin se depara quando está no círculo de pedra.
Tem vários temas que podem ser depreendidos desta história, mas o que chama mais atenção é o quanto Erin ama o seu irmão. Um homem dedicado àquele que compartilha de seu sangue. E esse amor irá colocá-lo em uma situação bem complicada, pondo sua vida em risco. As decisões que ele irá tomar ao longo da história vem de sua vontade de saber se seu irmão esta vivo ou não e se ele tem condições de ajudá-lo caso tenha a possibilidade. Erin vai se deparar com forças que ultrapassam a sua compreensão e precedem a chegada dos colonizadores no continente. Existe uma rixa entre os nativos e os colonos já que os últimos ocuparam terras que não eram suas em um primeiro momento. Não compreenderam que havia uma população anterior que tinha uma relação diferente com o universo natural que os cercava. Se pudermos fazer uma associação livre seria com a relação existente entre os povos nativos originários do Brasil e a chegada dos europeus. A destruição da faixa natural, a construção desenfreada de cidades e a falta de cuidado ao preservar aquilo que existia antes. É curioso porque apesar de serem temas tão distintos, Diego Guerra consegue relacioná-los bem: enquanto Emmond tem uma postura mais fechada, Erin acaba se abrindo mais a outras possibilidades por quanto da experiência estranha que ele tem. Ou seja, Erin foi aquele que buscou pensar fora da caixa e compreender melhor o outro lado do problema. Escutar aqueles que estavam ali primeiro. Algo que mesmo nós não fazemos hoje. Somos mais Emmond do que Erin.
2 - "Katyusha" (de Isa Prospero)
Avaliação: 5 estrelas
A família de Yekaterina vivia em uma bela dacha cercada de familiares e pessoas andando por toda a parte. A ama de Yekaterina, Katyusha lhe contava histórias tradicionais como a lenda do domovoi, o ser sobrenatural que vive e guarda a dacha. É preciso servi-lo com uma porção de comida para que ele se mantenha satisfeito e continue a exercer suas funções como guardião. Mas, a Rússia passa por transformações, guerras e revoluções e Yekaterina vai viver em São Petersburgo muitos anos mais tarde. Longe de sua dacha, vivendo com seu marido poeta, ela se torna uma escritora de panfletos e poesias consideradas subversivas pelo governo. Depois que seu marido é capturado pelas forças nacionais, a protagonista fica sem saber para onde ir. Sua vida foi abaixo e o único lugar onde ela pensa poder se esconder é em sua antiga dacha, agora uma casca queimada e em ruínas daquilo que foi um dia. Só que a dacha ainda tem um morador que parece não ter deixado o local.
Essa é uma bela história que mistura acontecimento reais com a fantasia. A biografia de Yekaterina é repleta de dissabores e tristezas e isso está presente entre as linhas da história. A autora consegue posicionar bem a história dentro desse contexto terrível vivido pela população soviética na época. Para aqueles que eram rebeldes, a vida era difícil e repleta de incertezas. Para uma mulher sozinha como ela, o perigo espreita a cada esquina. Ela pode ser fruto de abusos, violências de todo o tipo ou acabar morta pelos homens do Estado. Nas linhas da Isa, vemos o quanto a desesperança se apossou do coração de Yekaterina e ela quase sempre retorna a uma época de sua vida onde suas preocupações eram efêmeras. Existe também uma necessidade inerente a ela de manter seu legado e de seu marido vivos, mesmo diante do grau de violência exercido pelo stalinismo.
Consigo enxergar alguns indícios de folk horror na escrita da Isa Prospero aqui. Não sei o motivo, mas a narrativa me fez lembrar imediatamente do filme A Bruxa. Sei que o contexto onde o filme e o conto se passam são completamente distintos, mas a sensação é semelhante. O elemento fantástico do conto está mais para insólito do que para uma fantasia tradicional. É um sobrenatural que não pode ser ativado ou desativado, mas que precisamos conviver e respeitar, mesmo que esse suposto "guardião" nem sempre queira o nosso bem. A virada narrativa ao final é bastante sombria e nos joga na cara o quanto estes seres trabalham a partir de uma lógica própria e que entendem os seres humanos mais como ferramentas.
4 - "Sob as sombras do Akuna" (de Daniel Folador Rossi)
Avaliação: 5 estrelas
Arumu é o último membro de uma tribo que já foi muito poderosa. Agora eles são uma sombra do que já foram e perseguidos por seus inimigos. Mas, através de um pacto feito por seu pai, Arumu tem os poderes de um guerreiro-xamã. Ele está em busca de moemet'e, um poderoso espírito trapaceiro, fumador de cachimbo e com os pés virados para trás. Ele deseja obter uma memória de seu pai que fora trocada no passado para lhe garantir sua proteção. Arumu sabe que Moemet'e é sagaz e procurou antecipar seus passos com um plano que pode lhe ser benéfico. Mas, nenhum plano é capaz de prever o que um trambiqueiro é capaz de fazer. Se armando com a ilusão de um outro rosto, para não chamar a atenção ao seu povo perseguido, ele chega até o local onde o poderoso ser permanece e encontra outro jovem guerreiro chamado Taperi que veio em busca de alguma pista para curar seu pai de uma doença que afligiu todo o seu povo. Moemet'e vai arrumar um jeito de enganar os dois indivíduos e os colocar em uma jornada perigosa para obter algo que ele deseja. E certamente algo que um trambiqueiro deseja vai levar a algum tipo de armadilha.
Que bela história!! Gostei demais do domínio que o autor tem da cultura indígena e ele saiu um pouco da temática do embate entre brancos e índios para se concentrar em uma narrativa calcada no delicioso universo mágico que cerceia as diversas tribos. Para quem está mais acostumado com o padrão de fantasia europeu, é revigorante perceber o quanto não sabemos a respeito das várias facetas que compõem a adoração e o perigo que a natureza pode representar. Já tive a oportunidade de ler algumas histórias que pegavam forte nesse tema indígena, mas existe mais um fator a ser levado em consideração: a escrita. Para poder romper completamente com a estética europeia é preciso sair do clichê narrativo. E o autor faz isso muito bem. A narrativa tem um quê de maravilhoso e misterioso em que aceitamos coisas estranhas como fadas-promessa e esferas de doença ou uma tribo de morcegos humanoides. Adorei como fui envolvido em uma boa história que me pegava a explorar este lugar ao lado de um homem em busca de obter suas respostas.
Fica claro desde o começo que o objetivo do conto era nos mostrar o longo combate entre Arumu e o Moemet'e. E não um combate físico, mas um duelo de inteligências. Precisa ficar claro desde o começo que Moemet'e é um espírito trickster que cumpre desejos. Mas, ele sempre consegue encontrar uma forma de deturpar o desejo daquele que o procura. Logicamente que ele tem seus próprios objetivos a serem alcançados. E Arumu sabe do poder dele e tenta, em sua longa sabedoria, se prevenir ao máximo para não cair em suas armadilhas. Só que Moemet'e é tão antigo quanto o mundo e ele joga esse jogo há tempo demais. Ao longo da história, mesmo Arumu e Taperi sendo enviados em uma busca onde Moemet'e havia prometido não interferir, o protagonista sabe que algo está errado. Ele sabe que a facada nas costas vai vir, só não sabe quando e como. História sensacional!
5 - "Jeremejevite" (de Cristina Pezel)
Avaliação: 4 estrelas
Cibele chega junto com sua família a uma linda casa nova que eles adquiriram. Espaçosa, elegante, o sonho de todos. Enquanto eles estão desempacotando os seus pertences, Cibele vai conhecer um pouco mais da casa e dar uma relaxada após uma longa e estressante viagem. Só que ela começa a ver uma estranha aparição surgindo atrás dela. O que começa como sendo um pequeno susto e algo que ela acredita ser fruto de sua imaginação, se revela ser uma criatura antiga e maléfica que ameaça a saúde e a segurança de sua família. Para manter a sua paz de espírito, Cibele precisa ir atrás de três itens para a criatura, que deseja abandonar este mundo material: um anel de de esmeralda, um de diamante vermelho e outro de jeremevite. Há medida em que os dias passam o terror só vai aumentando.
Essa é a primeira história de terror que leio da autora e confesso ter gostado bastante da experiência. A ideia básica do conto é a construção do medo e da tensão. Como as coisas vão escalando pouco a pouco. A criatura não é nem um pouco intimidadora do ponto de vista da força, mas ela tem uma boa lábia e truques mágicos que impressionam Cibele. Ele mantém a tranquilidade enquanto, de forma ameaçadora, vai tirando as resistências e a descrença de Cibele. Tem um momento da história em que a protagonista percebe que se tornou escrava do duende. Ela faz de tudo para que sua família não seja afetada pelas maldições impostas por ele. O medo vai aumentando de intensidade com o passar do tempo, com as ações da protagonista se tornando mais desesperadas, perigosas e erráticas. O desfecho da relação entre os dois personagens é meio claro no sentido de que não havia para onde mais ir. E o final é bem legal, porque a autora o deixa em aberto, para a imaginação do leitor.
9 - "Carnavalito" (de Simone Saueressig)
Avaliação: 4 estrelas
Duda está ouvindo uma bendita música de flauta há algum tempo e ele não aguenta mais esse barulho. Ele tenta descobrir de onde vem enquanto acontece uma festa com todo tipo de pessoas fantasiadas ao seu redor. Até que ele vê uma pequena figura tocando a flauta. É então que ele consegue roubar a flauta e sair correndo enquanto o duende segue atrás dele. Ele se mete no meio de uma profusão de cores e rostos, tentando escapa das garras enfurecidas da criatura. Ele encontra uma bela mulher que desperta os seus hormônios em puberdade, mas dizem que no carnaval nem tudo o que parece, é. Poderá Duda siar com sua sanidade intacta? O que dirá de sua vida?
Essa é uma história curtinha que poderia ser resumida em uma canção carnavalesca. Sério! O ritmo da história é todo musicado, com rimas aqui e acolá. Não há bem uma trama definida com algum tipo de jornada específica. O que temos é um personagem aprontando travessuras no meio de uma festa que reúne uma série de criaturas sobrenaturais da América Hispânica. Representações de duendes da Patagônia, da América Central, como se fosse uma reunião ou um ritual envolvendo esses seres. Tem muita dança e música por toda a parte, mas como acontece com mitos dessas regiões, eles estão envoltos por uma aura obscura. É como o Dia de los Muertos mexicano e a figura da Katrina. Ao mesmo tempo em que a data é usada para festa e curtição, existe um componente macabro envolvido onde a passagem para outro mundo fica aberta. O mesmo pode ser dito aqui com a maneira como estes seres se relacionam na festividade. Existe a brincadeira, a troça, típicos de figuras semelhantes ao saci e ao curupira, mas também existe o roubar a alma, a morte instantânea. Gostei como o conto consegue transitar em uma linha divertida e desinibida ao mesmo tempo em que existe algo mortal no processo. O leitor vai ficar surpreso com a naturalidade como algumas cenas bem macabras acontecem. Inclua no pote a bela escrita da Simone Saueressig e você tem um pacote completo.
10 - "A fortuna de Rhydderch" (de Ana Lúcia Merege)
Avaliação: 5 estrelas
Rhydderch é um bardo que deseja se tornar rico e famoso na corte do rei Gruffydd. Ele tenta encantar a todos com seu carisma, seu conhecimento das histórias antigas e sua habilidade na harpa. Mas, Gruffydd tem uma série de outros bardos e ele pergunta a Rhydderch o que o torna diferente. É então que ele lança um desafio: o bardo deve sair pelo interior e buscar um dos Treze Tesouros da Britânia. Depois de encontrar um arauto, ele descobre que o único tesouro que um mortal poderia pôr as mãos é o caldeirão de Dyrnrch, cuja propriedade mágica é a de cozinhar alimentos apenas para os corajosos. Mas, para conseguir o caldeirão ele terá de enfrentar o terrível Modroch e atravessar a floresta onde vive o povo pequeno. Rhydderch tenta se precaver pegando flores da lua, cujas pétalas impedem que ele seja encantado pelos feitiços ilusórios dos duendes. Será que o bardo conseguirá levar sua missão a cabo e em um prazo de um ano conforme estipulado por Gruffydd?
Gostei bastante da escrita da autora que me remeteu diretamente a cancioneiros medievais, com narrativas que traziam histórias curiosas e envolviam o maravilhoso de alguma forma. Mesmo tendo um tom sério e até mesmo auspicioso em determinados momentos, a narrativa consegue entreter o leitor com um personagem curioso e que não tem nada de heroico. Rhydderch é um bardo que quer se dar bem na vida. Ele imaginou que iria enrolar o rei e acabou em uma missão bastante complicada. É importante destacar que cada detalhe da narrativa da autora é importante para o desenvolvimento, mesmo o menor deles. Devemos lembrar, por exemplo, que o bardo promete ao arauto que iria cumprir toda e qualquer promessa que ele fizer durante sua jornada. Por esse motivo, ele toma todo cuidado ao falar com alguém poderoso ou até para aqueles que o acompanham. A narrativa é bem fechadinha e não há furos de enredo. Os personagens presentes na trama tem um bom arco cada um. O leitor consegue identificar as características e peculiaridades de cada um.
Essa é uma narrativa sobre fazer e manter promessas. Muitos contos cautelares antigos tinham essa preocupação com o pode das palavras. Cavaleiros eram medidos por sua honra. Havia também uma necessidade de que seus nomes chegassem imaculados aos mitos e lendas contados a seu respeito. A aposta feita entre Rhydderch e Gruffydd é quase um ritual feudo-vassálico no qual o personagem está preso socialmente à promessa que fez. Logicamente que depois disso, durante sua jornada, as situações em ue ele se coloca tem a ver com etapas de sua jornada. Vale pensar que a autora usou uma estrutura clássica de histórias que remete aos contos de fadas: o dos três testes de coragem. Um personagem precisa passar por três situações específicas onde seus "atributos heroicos" são medidos. No caso se tratam da entrada na floresta, a busca pela tumba e a recuperação do caldeirão. Existe uma inversão nesse tropo mais adiante, quando da fetsa de celebração, mas gostei do emprego desta estrutura.
11 - "A noite em que quase morri" (de Eduardo Kasse)
Avaliação: 4 estrelas
Tita é uma vampira imortal que caminha entre os homens desde a época do Império Romano. Já viu, sentiu e curtiu coisas além de nossa compreensão. Mas, ela chegou a um momento de existência em que as coisas perderam a importância. A caça já não é tão interessante, o sangue já não é tão saboroso. Em uma de suas jornadas, ela acaba se envolvendo com o pintor Caravaggio, o que acende parte de sua chama. Depois de algum tempo juntos, subitamente o pintor desaparece sem deixar vestígios. Isso faz com que a vampira caia em um terrível estupor que parece poder levá-la a uma morte final desagradável. Só que uma força sombria parece estar por trás do desaparecimento de seu companheiro.
Essa é uma narrativa que se passa dentro do universo de Tempos de Sangue criado por Kasse. Mas, não é preciso ter lido nada para poder entender (tem umas menções aqui e ali que serão mais fan services para quem acompanha). A escrita do autor mudou bastante m relação à época em que ele escrevia seus livros vampirescos. Sinto uma segurança bem maior sobre o universo onde a narrativa se passa, como comandar o personagem (o famoso levar do ponto A ao B), gerar um interesse por aquilo que está acontecendo. A maneira como ele apresenta a história tanto pode caminhar para algo mais escrachado como pode adotar tons bem dramáticos. Mesmo com um tom leve, o drama vivido por Tita é bem grave. A personagem entrou em uma espiral de depressão, porque viveu tempo demais e os acontecimentos deixaram de fazer sentido para ela. Se coloquem na mente de alguém que não tem data para deixar esse mundo. Em algum momento, a criatividade acaba, a monotonia toma o lugar do dinamismo. Até se pararmos para pensar bem, não sei dizer se essa situação mortal no qual ela se vê envolvida é o suficiente para tirá-la desse tédio. Ela se move porque sua vida e sua imortalidade foram ameaçadas. Não vou dar mais detalhes porque quero deixar que os leitores aproveitem bem o conto que está muito bom.
site: www.ficcoeshumanas.com.br