Pathé-Baby

Pathé-Baby Antônio De Alcântara Machado




Resenhas - Pathé-Baby


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Henrique Fendrich 07/04/2023

A crônica impessoal de Antônio de Alcântara Machado
Um dia, Clarice Lispector, recém-alçada à posição de cronista do Jornal do Brasil, telefonou a Rubem Braga, que, evidentemente, era quem mais tinha experiência nesse negócio de fazer crônica. E disse: “Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?”. O sabiá, já calejado com tudo o que a crônica exigia e tudo que podia oferecer, respondeu gravemente: “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal”.

E, de fato, nada parecia mais verdadeiro que a frase de Braga. Desde José de Alencar, desde Machado de Assis, a crônica geralmente é feita em primeira pessoa, com comentários pessoais do cronista sobre algum evento ou aspecto da realidade. Eventualmente, sobretudo no caso de Machado, a opinião do cronista pode estar escondida atrás de camadas de sátira e ironia, mas mesmo aí o autor brinca justamente com a característica da crônica de ser pessoal.

Um olhar atento pode ser suficiente para captar as ironias e perceber como o cronista pensa. Na maioria das vezes, porém, o eu lírico da crônica coincide com o próprio escritor, se não no todo, pelo menos na essência do pensamento. A própria necessidade de arrumar um assunto para escrever, mesmo sem ter qualquer inspiração, obriga, de certa forma, o cronista a falar de si mesmo, pois dentro de si é onde mais facilmente ele pode encontrar um assunto.

Quando menos espera, lá está o cronista a falar do seu cotidiano, do que viu, do que sentiu e do que pensou, nem que para isso precise “expor” sua própria família. Na excelente definição de Miguel Sanches Neto, a crônica é uma “casa de vidro” por meio da qual o leitor o observa. O leitor de crônica, muitas vezes, é parte ativa do gênero, a ponto de influenciar o escritor, com quem sente ter uma relação… pessoal, como a própria Clarice pôde experimentar depois.

Há, é verdade, os casos dos cronistas que ocupam o seu espaço com gêneros ficcionais, como o conto, que, em tese, não se confunde com as ideias de seu escritor. Certamente, nos contos com que Fernando Sabino e Luis Fernando Verissimo, por vezes, fazem suas crônicas é preciso um esforço muito maior para identificar o pensamento do cronista. Clarice mesmo chegou a fazer algumas experiências nesse sentido, mas, ainda assim, essa não é a crônica “típica”.

A crônica de “não ficção”, essa sim, é necessariamente pessoal. Ou não? Aparentemente, não. O velho Braga, quem diria, equivocou-se, graças a um escritor de quem até foi amigo quando viveu em São Paulo: Antônio de Alcântara Machado, autor das crônicas de Pathé-baby (1926). O livro pode ser classificado como de crônicas de viagens, gênero talvez até mais pessoal, já que necessariamente conta as impressões do autor – mas Antônio conseguiu não ser pessoal.

Na verdade, a coisa é tão “absurda” que, em todo o livro, não se vislumbra um único “eu”, um único verbo conjugado na primeira pessoa (a não ser quando se trata de discurso direto, isto é, quando definitivamente não é o cronista quem está falando). Um livro de crônicas inteiro sem usar “eu” (e há tanta gente que escreve crônicas precisamente para poder falar vários “eu”)! Trata-se, logo se vê, de um livro com caráter experimental, muito difícil de se reproduzir.

Para entender como Antônio faz isso (e para provar que faz!), é melhor ver alguns excertos:

“Cem metros sim, cem metros não, gravuras de folhinha. Rua estreita, de lajedos grandes, que sobe em caracol. Rosas nas fendas dos muros. Um menino montado num burrico orelhudo de pelo arrepiado. Uma velhota. Outra velhota”.

“Galga as três colinas e para no alto, muito branca do esforço feito. A fachada do Duomo ri, alegre. O interior riscado de preto e branco é um prodígio de mármore. No pavimento do mosaico, norte-americanos pisam o gênio de Mecarino. O Palazzo Comunale tem pescoço de girafa. Um louco sacode as ruas. Anda gente louca atrás dele”.

“Ruído. Pó. E gente. Muita gente. O soldado apita, levanta o seu bastão, e a circulação pára para que possam passar, tranquilamente, a ama e o seu carrinho. Duas costureirinhas que tagarelam. A família que vai bocejar no banco do Bois. Um maneta vendendo alfinetes. Gargalhadas de uma loura de olheiras verdes. A Kodak de um inglês. Um casal de namorados. Israelitas ostentando a roseta da Legião da Honra. Monóculos. Paris que passa”.

Nota-se que é um estilo eminentemente descritivo, mas objetivo. Com ligeiras pinceladas, tenta o cronista retratar todo o ambiente e o cenário que envolve. Convém lembrar o nome do livro, pois Pathé-baby é um sistema de cinema amador, e toda a estrutura do livro faz com que cada cidade por onde Antônio andou seja como que uma “sessão” de cinema. As descrições são as cenas que o autor quer inculcar no leitor, na expectativa de que visualize o ambiente.

Não seria extraordinário se alguém acrescentasse parágrafos como esses ao longo de uma crônica, mas Antônio não acrescenta nada, ele faz a crônica dessa maneira, do começo ao fim – e, ao final, reúne várias delas em um livro, chegando a um resultado dos mais curiosos, em que, como dito, não deixa escapar um único pronome da primeira pessoa do singular, nem um escasso “a mim”, nem um reles “me”, nem um só “fui”, “fiz”, “vi” – o cronista desapareceu!

Tal é o distanciamento entre o escritor e o conteúdo de suas crônicas que Oswald de Andrade, em seu prefácio, chama os textos de Antônio de reportagem. Este é um gênero jornalístico que prima, justamente, pela objetividade, pela imparcialidade e, vejam só, pela impessoalidade. Será possível que Antônio conseguiu se afastar tanto do seu texto que, além de tudo, mandou para longe a própria literatura? Não chegou a tanto. A literatura está lá, e o cronista também.

O que acontece é que, com seu estilo, é muito mais difícil identificar o que o cronista pensa. Nos exemplos citados, vislumbra-se uma opinião, por exemplo, quando diz “Anda gente louca atrás dele”. E aí também se percebe o humor: na maioria das vezes em que é possível identificar uma opinião de Antônio nessas crônicas, ela vem acompanhada de alguma tirada humorística. Nem sempre se percebe, mas isso já revela que o cronista se divertia escrevendo.

Alguns exemplos de um humor sutil, mas suficiente para provar que o cronista está vivo:

“Descobrem-se mais cinco pares de colunas coríntias, três dorsos mutilados, dois metros quadrados de mosaico romano e chama-se o estrangeiro. Este vem, pasma e paga”.

“Por lá descia o cavalo de Calígula para votar no Senado (agora chegam de automóvel)”.

Apesar de todo o acobertamento do cronista, vez ou outra ele não resiste a confrontar a narrativa oficial dos guias turísticos, e aí ele se expõe ao leitor por um instante:

“- La octava maravilla del mundo.

O maior esforço do mau gosto universal”.

“- Se fije Ustd. en la grandiosidad de todo esto!

Horrível. Mas enorme”.

Houve um caso – um caso, no livro todo! – em que ele emite duas opiniões de forma aberta: “A cidade é a falência do urbanismo” e “Apunhalando o esplendor muçulmano, num contraste que é um crime, o fanatismo da Idade Média pariu um aleijão impagável”. A isso se soma uma sorrateira opinião de que “Dante é maior do que Florença”, e eis tudo o que se encontra de opinião explícita e evidente em todas as crônicas de viagem reunidas nesse livro de Antônio.

Em uma análise mais atenta, percebem-se opiniões escondidas por trás de adjetivos e certas associações de ideias, mas tudo muito fugidio, a demandar praticamente estudos acadêmicos para se dizer o que realmente o cronista pensa. De modo geral, a leitura do livro não revela ao leitor nada a não ser as raríssimas impressões sobre arquitetura e a desconfiança do autor em relação às narrativas oficiais. Mas quem era Antônio de fato? Isso ele esconde muito bem.

É possível que essas raras aparições já sejam suficientes para dizer que a crônica dele não é de fato impessoal, mas parece fora de dúvida de que nunca houve uma crônica de não ficção tão próxima da impessoalidade como essas de Antônio. Se Clarice fizesse algo parecido, certamente teria revelado muito menos de si ao seu público. Todo experimentalismo, porém, é um risco, e provavelmente a crônica de Antônio não é tão agradável quanto às de Clarice.

A verdade é que a gente gosta quando o cronista se expõe, porque é o que permite que a gente se aproxime dele. O espaço original da crônica, o jornal, é friamente objetivo, com o jornalista perseguindo o mito da neutralidade. Que pensa realmente o jornalista sobre aquilo que noticia? Não sabemos. O cronista, por outro lado, vai dar um palpite furado aqui, outro ali, e leitor sente até que pode discordar dele. Nem falei ainda da nossa inclinação pela fofoca.

Como um exercício, o livro de Antônio de Alcântara Machado se mostra uma experiência das mais interessantes. Ah, mas como é gostoso ler uma crônica pessoal de Clarice Lispector!

site: http://rubem.wordpress.com
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