Lauraa Machado 12/01/2021
Muito ruim, muito amador e superficial
O ano mal começou, mas já estou disposta a apostar que essa vai ser a maior decepção literária de 2021 para mim. Eu via tanta gente recomendando, gente que eu achava que era crítica e exigente, que comprei sem medo. Aí vi a resenha da G. G. Diniz no canal Usina de Universos e pensei que estava preparada para ver todos os problemas que ela tinha apontado e não me decepcionar. Pois eu já não esperava muito quando peguei o livro para ler por causa da Maratona Literária de Verão (sou do time do Poseidon, que tem esse livro como leitura coletiva) e acabei detestando ainda mais!
Eu não tenho nada contra a autora, tá? Não a conheço e nem acho que ela deve ser uma pessoa ruim ou qualquer coisa assim. Tudo que eu falar aqui tem a ver com o livro, a escrita e a história que ela apresentou em Porém Bruxa só, nada mais. É só a minha opinião. Se você gostou, que bom, mas eu detestei mesmo, estou até agora procurando alguma coisa que tenha sido boa, que tenha me agradado, mas não consegui encontrar ainda. Mas vamos por partes?
Eu tive vários problemas com esse livro, mas pelo que eu me lembro da resenha da G. G. Diniz (faz um tempo já que vi), concordo com tudo. Então, depois vai lá no Usina de Universos para dar uma olhada no que ela falou. Super vale a pena. Pode ser que eu fale algumas coisas parecidas aqui, já deixo avisado. Acho que tem um grande problema no jeito que a autora, por exemplo, lidou com religiões diferentes, e com a raça de personagens (ou seja, ela nunca descrevia nenhum), mas a Gabi Diniz falou no vídeo bem melhor do que eu conseguiria, então nem vou tentar. Só vai lá ver o vídeo dela depois.
A coisa que mais me incomodou em Porém Bruxa foi a constante sensação de que a autora tinha escrito uma lista sobre problemas socioeconômicos que precisava abordar e foi incluindo cenas inúteis, desnecessárias e extremamente superficiais só para poder marcar na lista que tinha feito. Uma grande parte disso foram as diversas religiões. Ela parece tentar atirar para todo lado, abraçar o mundo, e aí acaba deixando tudo muito raso e nada trabalhado, além de não passar uma ideia realista o bastante nem quando tenta. Por exemplo, o garoto que cultua deuses gregos ou o terreiro que não é descrito, não é importante para a história e nem tem pessoas diversas envolvidas. São muitas cenas mesmo com assuntos novos que nunca mais são abordados e que poderiam deixar de existir sem ninguém perceber. Uma delas é a do prólogo. É por causa de prólogos como o desse livro que tem gente que diz que não lê prólogos e acha que eles não são importantes. Esse daqui está no topo do mais inútil e sem sentido que já encontrei. Talvez seja o único, na verdade.
Tem várias cenas, por exemplo, cujo único propósito era a protagonista se mostrar feminista, mas muitas nem faziam sentido. Ísis é uma das protagonistas mais insuportáveis que já conheci, e olha que eu costumo amar aquelas que todos odeiam. Ela é a clássica pessoa que diz que tem opinião e personalidade forte, mas que na verdade é grossa e mal educada com qualquer pessoa, sem nunca ter consciência de classe ou empatia. Ela chega a interrogar a irmã de uma mulher desaparecida e ficar irritada com a demora da mulher para dar informações completas, uma mulher mais simples e que devia estar bem abalada. Para que empatia básica, né? Ísis é incrível, independente e forte demais para dar tempo a quem pode ter perdido a irmã (sarcasmo).
Outra coisa que é bem inútil são os personagens secundários que basicamente só existem para apoiar a protagonista. Quase nenhum tem outros rumos, outros problemas, a Ísis nunca se retira da própria vida para ajudar seus amigos, mas eles estão sempre presentes, sempre, absolutamente sempre, até mesmo quando precisam fazer o impossível para descobrir onde a Ísis está e do que ela precisa.
Todas as pessoas próximas dela, aliás, sabem quem ela é, e essa foi a pior ideia que a autora teve para o livro, de longe. Destruiu a possibilidade de criar tensão entre elas, de ter um segredo, de ter o conflito de criar mentiras e de depois ainda ter alguém descobrindo e a protagonista tendo que lidar com as consequências disso, o que teria sido muito mais interessante. Além do mais, isso de ter todos seus amigos próximos sabendo vai completamente contra a ideia de que ela precisa manter bruxaria em segredo dos comuns. Aparentemente, essa é a regra mais ignorada do universo, né?
Aliás, vamos falar de bruxaria? Eu não sei vocês, mas quando pego um livro de bruxaria para ler, o mínimo que eu espero é ambientação mágica e envolvente. Quero sentir que estou descobrindo um mundo secreto e mágico que se esconde atrás do nosso também quando leio fantasia urbana. Quero sentir a magia, ficar maravilhada por ela, imaginar as possibilidades e ter uma vontade absurda de desejar fazer parte desse universo, de me tornar bruxa também. Não senti nada disso enquanto lia esse livro. Foi, aliás, a fantasia mais sem sal, sem emoção e sem ambientação que já li. É um mundo completamente raso, nada palpável ou imersivo, nada encantador e incrível, nada envolvente. É tudo mais ou menos o nosso mundo mesmo, e faria pouquíssima diferença ter bruxaria no livro ou não.
Acho que é daí que veio o título, que não é explicado de nenhum jeito no livro. A autora inventou a história inteira e só depois completou com "porém, bruxa!" e incluiu isso sem ser algo necessário e intrínseco no enredo. É extra, dispensável e mal desenvolvido. A descrição das cenas é a parte que mais contribui para esse universo mágico raso, pois não é nada sensorial, nem muito visual na verdade. Não é porque o livro se passa em São Paulo nos dias de hoje que isso dispensa a necessidade de descrição de cena e lugares. O Brasil é bem maior que isso, e eu ainda esperava que a bruxaria fosse mudar alguma coisa na história.
A bruxaria e esse universo, aliás, não são nem um pouco explicados. Os poderes da Ísis são bem improvisados e aleatórios, o que atrapalha mais na história do que pode parecer. Como querem que o leitor fique ansioso e tenso com os acontecimentos quando nunca fizeram questão de explicar para ele os limites do poder das bruxas, do que é possível e do que não é, de por que algo é ruim e quão sem saída a protagonista está? Pela falta de explicação, eu senti o tempo inteiro que a protagonista poderia facilmente fazer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, então nem ficava tensa com seus problemas. E não é que ela nunca teve muita dificuldade em solucionar nada? Também, sempre tinha alguém para desfazer o problema, algum feitiço que nunca tinha sido mencionado para a Ísis usar bem na hora que precisava.
Além de eu ter terminado o livro sem a menor noção de como os poderes dela funcionam, também tenho zero ideia de como é o mundo bruxo, como é a sociedade deles, quais lugares exclusivamente bruxos existem, quantas pessoas bruxas tem, como se tornam bruxas ou se nascem assim. É bem aleatório também, uma aproximação de explicação superficial que na verdade não explica nada. Quando falei com uma amiga sobre isso, ela definiu super bem. São explicações como para crianças, sem qualquer aprofundamento, sem mostrar a complexidade por trás. É porque é e você é obrigado a aceitar, mesmo sem qualquer prova. A protagonista, aliás, contou muita coisa, mas mostrou pouquíssimas, então esse universo inteiro aí não convenceu nem um pouco.
Mas esse nem é o pior problema da escrita do livro. A narração é em primeira pessoa, mas Ísis não tem voz narrativa nenhuma, é tudo bem indefinido. Além disso, ela tem construções absurdamente formais que nem encaixam na história e nem combinam com o resto. Por exemplo: "(...) ela me comunicou a possibilidade de demorar um pouquinho no caminho", isso sendo que quem 'comunicou' era uma amiga super próxima dela. Para que dizer "comunicou" em vez de "dizer"? "A possibilidade de demorar"? Isso é o que o meu professor de gramática e preparação de texto chamaria de hipercorreção, que acaba só poluindo o livro. No meio disso, tem uma linguagem extremamente informal também, por exemplo: "Comi igual uma cavala." Ou seja, a autora nunca encontrou o tom do livro, nunca desenvolveu uma voz para a Ísis, e ela é tão sem personalidade quanto sua narrativa.
Por falar nisso, durante uma boa parte do livro, fiquei com a impressão de que a autora era advogada ou algo assim e acabei descobrindo que ela é pesquisadora. Fez sentido para mim, porque com uma linguagem incerta, sem desenvoltura e tão deslocada, encaixa melhor para um livro acadêmico mesmo, e não algo literário e descrito em prosa.
Pois é. Eu ainda tenho mais coisa para criticar. Enquanto isso, vou me perguntando aqui se tem alguma coisa da qual gostei. Poderia dizer que gostei da "representatividade", mas ela é tão superficial que parece ter sido feita só para completar tabela, então não conta. Poderia dizer que gostei da magia, mas seria bem mais mentiroso ainda, porque não teve nada de divertido na magia da Ísis e nas suas possibilidades (indefinidas pelo livro). Quem sabe poderia dizer que gostei da investigação, mas ela serviu basicamente para acabar no maior anticlímax possível e numa solução tão fácil que eu nem sei por que incluíram na história. O clímax de verdade, do final, é tão confuso e aleatório também, que a minha vontade era de abandonar o livro finalmente, mesmo que faltasse menos de 10% para eu terminar e que tudo estivesse prestes a se resolver. Não teve nada no livro que me interessasse, nada que fizesse com que eu me importasse ou me ligasse à história.
Queria não ter lido. Mas li e cheguei a perceber até os menores detalhes, por exemplo, a protagonista tratando um personagem de 12 anos como se ele tivesse menos de dez, ou o fato de que ela ganha dinheiro suficiente para ter um apartamento em São Paulo e eu não tenho ideia de como consegue ser paga desse tanto por não fazer praticamente nada. E, se faz, não aparece no livro. E o romance? Meio inexistente aqui, mas pior ainda é que não tem a mínima química ou tensão, nem deu para eu torcer para os dois ficarem juntos.
Mas o que eu quero criticar a partir de agora é bem mais sério que isso e foi tratado de um jeito absurdamente irresponsável pela autora. Acho que a G. G. Diniz pode ter falado sobre isso no vídeo, mas, senão, falarei aqui.
Vou dar spoiler neste parágrafo, não tem como evitar, mas pelo menos já deixo avisado. Se não quiser saber, pula pro próximo.
A protagonista passou por um abuso indefinido mas que parece ter sido tortura mental pelo seu antigo superior depois de ela recusar um relacionamento com ele. Quando conta isso, quando explica seu trauma ao seu atual superior, a reação dele é dizer que ele se sente atraído fisicamente por ela também. Isso, em si, já é muito ruim, mas pior foi a autora ter mostrado isso como algo bom, quando eu fiquei me sentindo extremamente desconfortável e encurralada. Não sei como um alarme não soou na cabeça da Ísis, já que esse é um sinal bem claro de que ele não sabe se colocar no lugar dela e não conseguiu ter essa conversa sem falar da própria atração. Mas isso é o de menos, já que ele decide ir denunciar o antigo superior sem nem perguntar para a Ísis o que ela acharia, sem perguntar se queria. É bom ter alguém que te apoia e te incentiva a denunciar? Pode ser muito bom, mas essa pessoa nunca, jamais pode tirar de você o poder de decidir sobre o que vai fazer em relação ao seu próprio trauma. Relacionamentos abusivos muitas vezes nascem de uma pessoa que desconsidera a opinião da outra e se acha no direito de tomar decisões das mais pessoais por ela. Foi isso que Victor, o atual superior de Ísis, fez. Ele tomou uma decisão que tem um impacto enorme sem nunca nem saber a opinião dela sobre isso. Ele ainda acabou ganhando uma promoção por isso, o que torna sua atitude ainda mais podre.
Claro que isso é um abuso de poder, é um sinal enorme de que um relacionamento com ele seria tão abusivo quanto o outro (ainda que menos óbvio e mais sorrateiramente abusivo), mas a autora ainda foi irresponsável em mostrar as consequências como sendo incríveis e ideais, transformando sua atitude em algo romântico. Na vida real, quem fica tendo que lidar com as mentiras que vêm depois, as dúvidas, as acusações e todas as piores consequências é a vítima. Seria bem diferente de como foi mostrado aqui. Isso, para mim, é inaceitável. Romantizar uma situação abusiva é inaceitável.
Mesmo sem isso, não teve nada que me agradou minimamente no livro, nem senti que estava de volta em São Paulo, então é claro que não vou ler a continuação. Achava que ia encontrar uma fantasia urbana brasileira como os livros da Cassandra Clare, só encontrei decepção. Queria não ter lido. Queria não ter decidido participar da leitura coletiva pela primeira vez na vida. Queria não ter confiado na opinião de quem tinha recomendado o livro. Queria não ter me decepcionado tanto. Porém, é a vida.