Rodrigo1001 15/04/2023
Agudo, furioso e mordaz (Sem Spoilers)
Título: Afetos Ferozes
Título original: Fierce Attachments: A Memoir
Autora: Vivian Gornick
Editora: Todavia
Número de páginas: 208
Vivian Gornick é autora de diversos livros, memórias e biografias e uma das lendas vivas do jornalismo norte-americano. Atualmente, a autora vive um bom momento: as memórias que publicou originalmente nos anos 80, Afetos Ferozes, foram traduzidas para 13 idiomas nos últimos 4 anos e foram aclamadas pela crítica e também por apaixonados leitores em Português e Espanhol, que finalmente a descobriram.
Começo dizendo que Vivian não poderia ter escolhido um título melhor para o seu livro. Tudo nele é feroz, indômito, impetuoso, intrépido e ousado. Discorre, basicamente, sobre a relação da autora com a própria mãe – relação essa que redefine o que conhecemos como Complexo de Édipo, onde os personagens centrais não são mãe e filho, mas, sim, mãe e filha e onde a rivalidade não é entre filho e pai, mas sim entre a própria mãe e a própria filha.
É um livro cortante, com absolutamente zero floreios.
À medida que eu ia avançando na leitura, me perguntei várias vezes se a mãe da autora ainda estaria viva em 1987, ano de lançamento da obra. Me questionava isso porque nunca antes havia visto uma relação mãe e filha ser dissecada de forma tão escancaradamente aberta. É uma plena renúncia ao amor romântico, ao amor materno onipresente, uma forma maravilhosa de descrever os altos e baixos de um vínculo mãe-filha. Tão honesto e transparente, de fato, que chega a ser assustador... me peguei várias vezes relendo parágrafos e fazendo pausas na leitura somente para pensar a respeito, absorver e depurar os choques e os impactos. Uma liberação em maré montante de introspecção. Ouso dizer que nenhuma outra autora me impressionou tanto em sua forma de expressar e entender muitos aspectos das relações pessoais de forma tão inteligente e excepcional. Me deparei com um romance contado a partir de uma visão tão universal quanto a literatura masculina, mas muito menos transmitida.
De um outro extremo, me pareceu uma exibição corajosa de uma vida com aparência de normalidade. As nuances, as sensações pessoais de frustração e angústia, são vivenciadas pelo leitor quase como se fossem suas, tal é a empatia que a autora produz com esse livro.
Confesso que Afetos Ferozes me agitou durante toda a leitura, talvez porque nele eu tenha reconhecido as mulheres da minha vida, reconheci atitudes de algumas mães, da minha própria mãe, e de mim para elas. A autora retrata de forma muito vívida ideias e pensamentos com que muitas mulheres têm de lidar, tentando construir uma vida daquilo que lhe incutiram ao longo dos anos, em casa e na sociedade, e sentindo as suas próprias mães apoiando-as, mas também julgando-as ao mesmo tempo em cada movimento.
Por fim, poucas coisas posso dizer sobre este magnífico romance autobiográfico que ainda não tenham sido ditas. A escrita mágica de Vivian Gornick nos leva pela mão nos passeios com sua mãe pelo Bronx e por suas vidas, sempre juntas, mas nunca se idolatrando. Um relacionamento que, de alguma forma, iria levá-las à destruição. Sem dúvida, a minha parte preferida é a descrição do prédio onde elas moravam, sempre movimentado, numa comunidade onde viviam homens, mas onde simplesmente eles nunca estavam. E por isso mesmo, a autora se constrói como mulher a partir dos diferentes modelos femininos que a cercam. Acho que todos podemos nos ver refletidos em Gornick e nossas mães na mãe dela.
PS: só perdeu 0.5 estrelas por cometer o pecado de dissecar um relacionamento amoroso da autora já no fim do livro, desfocando o tema central mãe-filha. Fora isso, um livraço que todos deveriam ler.
Leva 4.5 de 5 estrelas.
Passagens interessantes:
“O amor de papai tinha de fato propriedades extraordinárias: não apenas compensava o tédio e a ansiedade de mamãe como era a razão de seu tédio e de sua ansiedade.” (pg 30)
“Hoje, o amor é uma coisa que se conquista. Mesmo entre mães e filhos.” (pg 51)