Jaguatirica 06/09/2020
Queima quengaral
"E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão."
"E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar- se como larvas no esterco."
"Sentia- se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra."
Acho muito interessante as descrições do naturalismo*, a forma seca, distante do emocional, de descrever as pessoas, como mera parte da natureza, precária, nada demais.
Resumo oficial: Obra-prima de Aluísio Azevedo, O cortiço (1890) é a principal referência da estética realista-naturalista na literatura brasileira. Narrado em terceira pessoa, o romance tem seu enredo montado não em função de uma personagem, mas em torno do conjunto humano. O cortiço de São Romão, meio em que se percebe a luta dos mais pobres pela sobrevivência e a exploração econômica destes desvalidos, é o laboratório em que as teses cientificistas da época buscam se comprovar. Aluísio recebeu influência dos escritores Eça de Queiroz e Émile Zola.
*Nota sobre o ciclo anti-romântico (Realismo e Naturalismo) na literatura brasileira: ocorre na segunda metade do séc. XIX, suas características destaques são a ruptura com os ideiais românticos, o subjetivismo e o idealismo amoroso. Neste sentido, a literatura realista/naturalista denuncia a hipocrisia das relações sociais e a formação do cenário burguês, prezando ainda um resgate ao Objetivismo, influenciada pelas revoltada liberais, o empirismo, as teorias de evolucionismo, determinismo social e positivismo.
Características Realismo: linguagem crua e direta, muito descritiva; cosmovisão racional e compromisso com o real; amor subordinado aos interesses; herói problemático; apresentação dos costumes da classe média; universalismo.
Características Naturalismo: visão determinista (nasce entre lobos logo é lobo, não há conserto, o homem é reflexo de onde habita); animalização dos personagens (cruéis, grosseiros, instintivos, capazes de tudo); sexualização do elemento feminino; despreocupação com a moral; valorização do aspecto biológico.
O Cortiço tem tudo isso e um fato interessantíssimo é a consciência social das personagens femininas do cortiço. Elas se apoiam e estão pouco de lixando pras "obrigatoriedades sociais" as quais são impostas. O pensamento liberal é bem forte aqui.
"Casar? protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu!"
"Por isso é que se vê tanta porcaria por esse mundo de Cristo! disse a Augusta. Filha minha só se casará com quem ela bem quiser; que isto de casamentos empurrados à força acabam sempre desgraçando tanto a mulher como o homem! Meu marido é pobre e é de cor, mas eu sou feliz, porque casei por meu gosto!"
"Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando."
"A Bruxa, indiferente, não interrompera sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dores, de mãos nas cadeiras, a saia pelo meio das canelas, um cigarro no canto da boca, encarava desdenhosa a sanha daquele marido, tão brutal como o dela o fora. Sempre os mesmos pedaços de asno!... comentava franzindo o nariz. Se a tola da mulher só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se ela não toma a sério a borracheira do casamento, dão por paus e por pedras, como esta besta! Uma súcia, todos eles!"
A leitura deste clássico divertido, chocante e de escrita impecável vale muito a pena! É a primeira referência que penso quando alguém me pergunta exemplos de textos do Realismo e Naturalismo. Ou seja, referência boa pra quem deseja conhecer esse estilo.