Vitoria.Milliole 31/01/2024
Os Testamentos vem como uma continuação, trinta e cinco anos depois, para O Conto da Aia. Depois do primeiro livro, muitas perguntas ficaram em aberto sobre o futuro de Gilead, e a principal delas foi: como Gilead caiu? E é pra responder a essa pergunta que Margaret Atwood nos presenteia com Os Testamentos que, ao contrário da narrativa mais intimista e expositiva de Offred, traz relatos em forma de testemunhos e um manuscrito.
Gilead é perversa, cruel, especialmente para com as mulheres. Reúne tudo o que o gênero feminino sofreu no passado, tudo o que sofre ainda hoje nos países mais liberais e naqueles mais oprimidos e tudo o que ainda nem foi pensado para fazer sofrer. Tudo isso num único lugar.
O livro traz o testemunho de Agnes, uma menina criada sob os ensinamentos de Gilead que se recusa a ser uma Esposa aos treze anos de idade. Também traz o testemunho de Daisy, uma menina do Canadá, longe de toda essa loucura que é Gilead, mas por algum motivo mais envolvida em tudo isso do que ela pode imaginar. E também traz o manuscrito de Tia Lidya, uma das Fundadoras de Gilead. E, apesar de não parecer, todas as partes se conectam.
A leitura me fez pensar em muitas coisas. A primeira delas foi tema de um post que li no instagram por esses dias: como a literatura escrita por mulheres é vista como literatura feminina enquanto a escrita por homens é vista como literatura mundial. Ao serem questionados por quê não leem livros escritos por mulheres, muitos homens respondem que trata-se de literatura para mulheres. Será que já pensaram o que seria deles se achássemos que a literatura deles é para homens? Você pode estar se perguntando onde isso se encaixa nessa história. Bom, mulheres não escrevem apenas para mulheres. Escrevem fantasia, romance, distopia, ficção científica ou qualquer outro gênero, assim como homens. Com protagonistas femininos ou masculinos, assim como homens. Mas esse livro aqui, em específico, é uma história escrita por uma mulher, com protagonismo feminino e com uma história que traz maior empatia para mulheres. Mas deveria? O maior número de leitoras de mulheres do que de leitores mostra, exatamente, como Gilead se tornou Gilead. Como nossa voz ser silenciada não é um futuro distópico, mas um presente real. Um homem não ter interesse em ler um livro que fala sobre o silenciamento de mulheres demonstra, por si só, de onde vem esse silenciamento.
A segunda coisa que me fez pensar foi sobre a rivalidade feminina. Eu não acreditava que ela existia até recentemente, quando a vi de perto. E percebi como é perigoso não acreditarmos nela. É dela que vem a nossa desunião. No livro vemos um mundo onde todas as mulheres, sem exceção, são rebaixadas a animais. Ainda assim, algumas olham para outras com desprezo, com certo ar de imponência, porque a opressão sofrida por ela não é tão forte quanto a sofrida pelas outras. Um mundo onde mulheres se vejam como cúmplices, não como oponentes, não tem como se tornar uma Gilead. O que nos torna frágeis não é a ausência de músculos, nossa falta de testosterona ou a presença de um útero. O que nos torna frágeis é a desunião. Estamos em maior número no mundo do que os homens e sabemos muito bem que quantidade é força, então o que mais justificaria não existir uma única história que retrate homens como oprimidos senão o fato de que todo mundo sabe que eles são unidos e jamais tornariam isso possível?
Por último, refleti sobre o papel da educação. No livro, tantas meninas e mulheres se sentem privilegiadas por poder escolher entre A e B sem saber que o C também poderia ser uma opção. Se contentam com o pouco por ele ser melhor do que nada, mas só porque não conhecem o muito. Não tiveram educação suficiente pra saber que mulheres um dia já trabalharam, estudaram, foram figuras importantes, fizeram a diferença no mundo. O mundo real tenta nos tirar a educação, porque é assim que ele cria uma Gilead.
Gilead parece um absurdo, algo distante, impossível de acontecer, mas só aconteceu ali no livro porque as mulheres permitiram ao deixar de estudar pra se casar, ao preferir o namorado à melhor amiga, ao disputar o lugar com outra mulher ao invés de as duas se apoiarem. Gilead foi construída a partir da fragilidade feminina, uma fragilidade construída aqui, na vida real, por séculos. Uma fragilidade que nos fazem acreditar que temos e que abrimos caminho para que a tenhamos.
Foi lindo ver a resiliência e a resistência de algumas poucas mulheres dentro desse sistema, que tiveram que tolerar e até cometer barbaridades para enfim se livrar desse caos. Termino essa leitura com muita reflexão e com um gostinho de quero mais: um spin-off mostrando a adaptação das meninas nascidas em Gilead ao novo mundo após a sua destruição seria incrível. A prisão assusta, mas a liberdade também. Isso se demonstrou nos capítulos finais, com a estranheza da Agnes com o mundo externo a Gilead. Será que um dia ela deixa os bordões e costumes arcaicos desse sistema? É algo que eu amaria acompanhar.