Pandora 06/03/2021“Ia dizer apenas que sentia muito, pêsames, aquelas coisas. Mas disse que o Carlito era diferente, era o melhor quando corria no frio. Era o dono do inverno, o dono do inverno, repetiu para nós dois.” - pág. 130
Eu adoro o Altair Martins, é um autor que sempre recomendo, mas este livro dele foi o que me causou mais estranhamento. É um livro bom, porque o Altair tem o dom da palavra, tudo flui, mas foi mais difícil me envolver aqui.
Primeiro que é uma narrativa de estrada, o que já não me agrada muito; depois que trata em parte de turfe e cavalos, que não me interessam at all, por fim tem umas passagens de sofrimento animal que só me fazem ter vontade de não ler.
O que eu gostei, afinal? Do drama familiar. Adoro histórias de família.
Desde a morte precoce do jóquei Carlito, há 24 anos, num acidente de moto, seus dois irmãos não se falam. Agora, Elias, professor de Biologia e Fernando, taxista, rumam a Buenos Aires com a ossada do irmão até o local onde ele competiria se não tivesse morrido. Durante a viagem lembranças, traumas, mágoas, mal-entendidos e um luto tardio vêm à tona, unindo esses irmãos há tanto separados.
“E apesar disso, o que espanta é que tenhamos vivido distantes. Depois da morte do Carlito nos tornamos o resto, aquilo que não precisa ficar inteiro. Mas só agora, viajando juntos, um parece envelhecer o outro. É mesmo deste modo: para envelhecer, temos que continuar, os vivos, lembrando o que nos é comum.” - pág. 161
Em vários momentos eu me desliguei do que estava lendo e recordei as várias viagens que fiz com meus pais e irmã pelo interior de São Paulo, as pastagens, as longas estradas arborizadas - minhas preferidas -, o cheiro que vinha das fábricas de papel, o enjoo nas curvas, as muitas sorveterias das cidadezinhas onde meu pai fazia questão de parar (e pedir sorvetes em ordem alfabética), os restaurantes de beira de estrada cujos banheiros sujos eu sempre queria visitar, para horror da minha mãe. Eu não sabia - e não queria - fazer xixi no matinho. No fim, embora eu não tenha me envolvido tanto com a história deste livro, quando ele trouxe parte da minha própria história, eu gostei mais dele. Às vezes me sinto assim em relação a uma leitura: ela me ganha não pelo que traz, mas pelo que desperta.
Nota: C. Martins, o pai de Altair, era jóquei e morreu num acidente de moto em 1981. Segundo o autor, a ideia para o livro veio de uma cena de sua infância, numa manhã fria de inverno em que assistia ao pai dar voltas com o cavalo no Hipódromo de Cristal, em Porto Alegre. Ele corria com a cabeça muito próxima à do animal e, quando parava para conversar com o veterinário, a impressão era que estava falando aquilo que o cavalo havia lhe contado.” Para testar a viabilidade da narrativa, Altair Martins fez três viagens à Argentina, a primeira, em 2015, nos mesmos moldes dos personagens. Fonte: página do autor e da PUC-RS.
Prêmios: Altair já ganhou vários prêmios literários, entre eles: Prêmio Guimarães Rosa, da Radio France Internationale, em 1994 e 1999, Prêmio Açorianos, Prêmio São Paulo de Literatura e Prêmio Moacyr Scliar.