Baseado em palavras não ditas

Baseado em palavras não ditas Carla Dias




Resenhas - Baseado em palavras não ditas


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Krishnamurti 05/10/2019

O PODER DA PALAVRA
O PODER DA PALAVRA

Francamente. A cada dia que passa assola-nos uma terrível sensação de mal estar. Somos tomados por um desânimo, um desalento porque assistimos impotentes a um choque gigantesco e global entre a Civilização e a barbárie. No Brasil e no mundo. Ameaças rondam conquistas nos campos da atividade humana em todos os espaços do conhecimento. Floresce um relativismo moral ancorado num cinismo avassalador e estão abertas as comportas da ilegalidade. Expande-se o comércio de drogas e de armas, gerando uma onda global de criminalidade. Com efeito, a invasão bárbara da pós-modernidade irrompe na sociedade globalizada, banalizando comportamentos e desejos. É perigosa a crise de valores e são muitos, e em todas as direções, os flagrantes de intolerância, frieza, transgressão da ética e moral. Como ética – entendida como o conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade - , está intimamente ligada ao caráter, essa perda de valores deixa de ser um caso particular, propriamente dito das esferas políticas. Está presente em todos os segmentos da sociedade.

E a impunidade acaba (até porque não há como punir tanta falcatrua, logro, fraude, trapaça e etc.) fomentando essas práticas e criando ciclos viciosos. Quem diria? Era de se esperar que em um mundo globalizado com tanta tecnologia ao dispor, com pessoas conectadas e consequentemente atentas a tudo o que acontece, houvesse o resultado lógico de um acesso amplo e irrestrito ao conhecimento, uma sociedade mais justa que ensejasse o desenvolvimento humano. No entanto o que se vê é uma crise generalizada de valores. Substituímos a riqueza intelectual pela riqueza material, no viés de que o valor do homem baseia-se nas posses materiais que este tem, e não conseguimos alimentar um ideal mínimo de busca pelo bem comum. Ao contrário, estamos cada vez mais individualistas, buscando futilidades como a estética corporal "perfeita", ou o consumo voraz a mais não poder, ou ainda, em casos extremos, ligados a pensamentos ideológicos suicidas, cujo propósito maior é convocar novos membros para disseminar o terror, e a mediocridade. Não nos referimos à ausência ou presença de valores. É questão de força, de grave enfraquecimento do senso moral de nossos dias em que tudo é fragmentado, e a moral se torna quase um luxo, porque pressupõe conservação e nesse mundo nada se conserva. A lei surda é transgredir.

A leitura do romance “Baseado em palavras não ditas” da escritora Carla Dias se por um lado nos faz refletir sobre questões tão prementes como essas, por outro, nos enche de certa esperança, porque as criaturas e situações imaginadas estão pejadas de possibilidades existenciais a nos mostrar que ainda assim, e apesar dos pesares, é possível mudar direções, reavaliar conceitos, experimentar novas perspectivas. Dois pólos ficam muito claros na obra. O primeiro diz respeito a essas questões, por assim dizer de mudança de atitude. A segunda, de caráter um pouco mais aprofundado, revela-se na direção e sentido que o próprio título nos suscita. “Palavras não ditas”. E é pensando em palavras que o leitor encontrará na abertura da obra aquilo que convencionamos chamar de exórdio, que nada mais é do que um texto breve e preliminar de apresentação, com indicações sobre o conteúdo, objetivos e etc. Nesse “et Cetera” o leitor percebe estar diante de uma autora que sabe exatamente o que faz, e com uma percepção tão atilada que de pronto, e em tão poucas linhas nos impulsiona de maneira irreversível a encarar as 288 páginas da obra com vivo interesse. Vale a pena transcrevê-lo:

“Não sei onde fica o inferno. Há quem diga que está na alma. Há quem diga que está no corpo. Há quem diga que está na mente. Há quem diga que o conhecemos depois da morte, na hora de pagarmos a conta dos nossos cotidianos e impronunciáveis pecados. Há quem diga que ele não existe. Sei de nada sobre o inferno a não ser que, na falta de definição, ele se molda à nossa realidade. Assim, concluo que silêncios são fundamentais. Pausas são providenciais, A ausência de presença desejada é mesmo um inferno, onde faltas se insinuam aos berros. Ninguém foge de um inferno edificado em saudade, principalmente do inferno de sentir saudade de si mesmo; daquele que nunca foi e jamais se tornará. De todas as palavras que não se sabe se foram ditas, a quem, no quando.”

Percebemos que o texto acima poderia ser simplesmente o desabafo do protagonista da obra. Antônio Quintana, um sujeito que sofreu uma agressão física tão violenta durante um assalto, que o deixou desmemoriado. Escrevemos acima “poderia ser simplesmente o desabafo do protagonista”, mas se atentarmos bem, fica-nos o nó na garganta. Aquela dorzinha de palavras “não ditas”, aquelas que deveríamos ter dito e não dissemos por mil e uma razões, e nas mais variadas circunstâncias da vida. Quem nunca? Muito bem, adiante.

Esse tal Antônio, após ter sido amparado por uma enfermeira do hospital onde esteve internado, que lhe reorientou a nova vida de desmemoriado completo, e até batizou-o com um novo nome, trabalha em uma loja. Vive lá sozinho em uma casinha, e busca re-encontrar suas memórias pregressas até que, por uma das voltas que a vida sempre dá, queiramos ou não, conhece um tal Sr. Pilkvist, um milionário de oitenta e cinco anos que propõe adotar Antônio como um filho que teve fora do casamento. Está armada a trama. Se por um lado Quintana fica desmemoriado compulsivamente por conta da violência que sofreu, Pilkvist, embora seja um roteirista muito bem sucedido da indústria do entretenimento (é produtor de filmes e séries para o cinema e televisão) e podre de rico, luta contra seus demônios particulares no sentido de esquecer a todo custo suas origens. Aí temos; ambos trazem em comum um passado nebuloso, turvado por palavras não ditas ou inconfessáveis. O velho renega suas origens conscientemente, o quarentão Antônio, desconhece as suas. Veja-se que laboratório riquíssimo.

A proposta é feita e “não há indecência ali, mas uma real ousadia no roteiro de desfecho da vida de quem trafegou entre um império do crime e premiações de séries e filmes. Antonio não acha que dará certo, mas não consegue descartar de imediato. Quer saber mais.” E nesse querer saber mais descobre que a família de Pilkvist amealhou fortuna incalculável no mundo do crime organizado, embora ele próprio, por opção, tenha direcionado sua vida para outras direções mais honestas. Segundo o próprio Pilkvist, sua família primava por manter a imagem das empresas, impecável e requintada. “E havia as empresas em si. Elas serviam de fachada para os negócios ligados ao tráfico de drogas, de armas, de pessoas, de prostituição e por aí vai. A família do roteirista conseguiu montar uma organização que atuava em várias frentes. Negócios locais, empresas pequenas, tornaram-se fachada para grandes realizações criminosas.”

Depois de assistir ainda quando criança, ao espancamento até a morte de um dos empregados de sua família (acusado de furto de mantimentos), levado a efeito pelas mãos de seu próprio pai e incentivado pela mãe, o roteirista resolve se afastar daqueles negócios espúrios de sua família e chega à velhice constatando que hoje já “não basta mais ser criminoso de sucesso. É preciso se tornar um criminoso bem-sucedido e celebridade, daqueles que gostam de se mostrar. Não há mais o requinte do mistério, do oculto.” É o fim do poço! É o “despautério do crime”.

Nas relações que os dois acabam estabelecendo, a vida de Antônio passa de um mundo fechado na convivência com Marta ( a enfermeira que o acolheu e ordenou-lhe a vida após o assalto e espancamento), e D. Jurema e Sr. Cabral seus patrões no mercadinho em que trabalhava, para outro mundo, bem mais complexo, das relações empresariais do Sr. Pilkvist. É quando conhece Gabriela, a Gabi uma criança de dez anos (personagem riquíssimo), e também Lucila, Haroldo, Teodoro, Viviane, Siena e Enzo. Todos moradores da mansão Pilkvist e, de uma forma ou de outra, acolhidos pela “generosidade” do Sr. Pilkvist. Mas aí, os mundos e as histórias pessoais se entrelaçam em situações que vão se revelando ao longo da narrativa. Mas o cerne da trama romanesca gira mesmo em torno da relação que se estabelece entre Antônio um homem vazio de histórico, e seu ‘protetor’, mestre em criar roteiros e ilusões e único honesto numa família de requintados e poderoso criminosos. O desfecho dessa situação inusitada é positivamente surpreendente e rico de experiências humanas.

Em algum ponto da narrativa da senhora Carla Dias, há essa frase: “Sr. Pilkvist acaba sempre por encontrar algo mais valioso no que não é dito, mas se torna sentimento”. Com efeito é uma pontinha do véu que se levanta em uma personalidade tão singular (e necessária), como a de Pilkvist. E perceber a grande metáfora oculta em “palavras não ditas”, dependerá, lógico da percepção de cada leitor, muito embora o esforço empreendido pela autora nesse sentido não demande do leitor grandes exercícios intelectivos. Aqui algo nos lembra o filósofo Francisco José Martín, para quem o o uso metafórico da linguagem é uma ferramenta intelectual sofisticada. E como linguagem aqui, queremos incluir desde a belíssima e acertada concepção da obra de Carla Dias, os recursos ficcionais empregados, o estilo, até o recorte dos capítulos que a autora idealizou para que possamos pensar nossa circunstancialidade, e nossa contingência de habitantes do planeta Terra no caótico século XXI, tendo em vista outra coisa que o mesmo José Martín afirma: “En cuanto ser histórico, el hombre no es algo ya conformado y hecho de una vez por todas”. Ou por outra, cada indivíduo deve cumprir a exigência e a interpelação existencial de fazer-se, de criar-se a si mesmo.

E vamos mais a fundo ao lembrar desses versos de María Zambrano “¿Es que la verdad era otra? ¿Tocaba ya alguna verdad más allá de la filosofía, una verdad que solamente podía ser revelada por la belleza poética; una verdad que no puede ser demostrada, sino sólo sugerida por ese más que expande el misterio de la belleza sobre las razones”. Algo assim transfigurou-se na ficção da senhora Carla Dias, uma benfazeja revalorização flosófica do pensamento humanista e, portanto, da literatura e da retórica como formas legítimas de especulação sobre o real. Não é por outra razão que muitos de nós já perceberam que mesmo que todas as possíveis questões científicas tivessem recebido resposta, os nossos problemas vitais não teriam ainda sequer sido tocados. Essa citação é de Ludwig Wittgenstein, e está em “Tractatus logico-philosophicus”. A figura de Pilkvist é a de uma bela rosa nascida em um pântano pútrido que se transformou, porque chega afinal à conclusão de que não é possível viver-se, não é possível construir-se absolutamente nada em termos sociais sem qualquer senso moral, sem ética, sem princípios, sem um objetivo digno!

Vemos que a humanidade, principalmente no último século, concentrou-se muito no desenvolvimento da ciência e tecnologia, o que sem dúvida melhorou nossas condições materiais de vida. Porém, visando o conforto exterior, o ser humano foi deixando de lado seu plano interior. Esse enfoque tecnicista fragmentou inclusive nossa educação, priorizando o acúmulo de conhecimento, e a competição acirrada, o que provocou uma desestruturação do ser humano que, por sua vez, se reflete na realidade violenta de nossa sociedade causada pela completa falta de perspectiva existencial.

Neste ponto, fica-nos um gosto amargo de desânimo. E a pergunta, à guisa de conclusão, se impõe: O que fazer? Entregarmo-nos à desesperança de que não há solução ou procurar nesta profunda crise de valores outros caminhos? Nos grandes momentos de crise precisamos estabelecer critérios pelos quais deveremos pautar nosso comportamento. É preciso buscar e estabelecer critérios válidos para o acerto de nossas decisões. Crise tem também o sentido da purificação e superação. E é lá, na família (tão avacalhada nos últimos tempos), que pode começar o caminho de volta ao cultivo dos valores fundamentais. Ensinar que vale a pena ser honesto, que é saudável o sentimento de revolta contra o esbanjamento da coisa pública, da mentira de promessas hipócritas e, muitas vezes, criminosas. É inadiável ensinar com palavras e, sobretudo, exemplos - É preciso reabilitar a inteligência sob forma de ética. Este é o exemplo maior do personagem Sr. Pilkvist. - urge construir um mundo melhor, migrando de uma ética relativista para uma ética comunitária e solidária. Já passou da hora de marcharmos para um momento fecundo de renovação humanitária. A vida vale a pena!
Trecho:

“Eu criei um mundo dentro de mim, com tantas nuances que me permitiu ser para mim e para o mundo, algo menos egoísta e letal. É impressionante como algumas pessoas são incapazes de enxergar o valor do outro, simplesmente porque esse valor não atende às expectativas delas. Por isso eu tomo muito cuidado com as minhas, desde lá, de quando era um menino enfiado na biblioteca, criando meu mundo. Tento não as direcionar ao outro, porque o outro não sou eu e eu sou a única pessoa de quem posso cobrar um comportamento que me agrade. Ninguém mais, além de mim, veio ao mundo para atender às minhas expectativas.”

Livro: “Baseado em palavras não ditas” – Romance de Carla Dias – Obra publicada com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo São Paulo - SP , 2019, 288 p.
ISBN 978-65-900763-0-4
Compra e pronta entrega: DIRETO COM A AUTORA no Facebook, ou em carladias@carladias.com
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