Pedro Páramo, O Planalto em Chamas

Pedro Páramo, O Planalto em Chamas Juan Rulfo




Resenhas - Pedro Páramo, O Planalto em Chamas


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Alan Santiago 21/12/2009

Um lugar sobre as brasas
Os olhos cansados e observadores do escritor mexicano Juan Rulfo, falecido em 1986, queimaram as poucas plantas e o chão árido daquele planalto esquecido e poeirento onde pululavam fomes, tragédias e guerras. Nos 15 contos do volume O Planalto em Chamas de 1953, descortinam-se diante do leitor um tropel de senhoras de xales na cabeça e terços de contas entre os dedos com a missão de canonizar um santeiro que nunca foi santo; de agricultores com enxadas nos ombros à procura de uma terra que lhes foi doada e que de lá não brota um único grão de coisa alguma; de pessoas marcadas para morrer e pedindo em desespero que não lhes matem e também de loucos sem cura que racham o crânio na parede.

É um relato cruel de pessoas esquecidas num México agrário e revolucionário. A Revolução Mexicana – que incendiou o país a partir de 1910 e ajudou a derrubar o ditador Porfírio Díaz – junto com a Guerra Cristera, um levante armado contra alguns artigos anti-católicos da Constituição de 1917, detonaram o mecanismo da bomba que acabaria resvalando em muitas famílias latifundiárias mexicanas, incluindo a de Rulfo. Com a família já decadente, ele acompanhou o assassinato do pai em 1923 por motivos políticos e a morte da mãe em 1927. San Gabriel, o pequeno povoado onde foi criado, era um mar de superstição e culto aos mortos.

Todas essas referências unidas produziram uma das obras mais perturbadoras do século XX: “não são mais de 300 páginas, porém são quase tantas e creio que tão perduráveis como as que conhecemos de Sófocles”, afirmou o prêmio Nobel de Literatura de 1982, o colombiano Gabriel Garcia Márquez na comemoração do cinqüentenário da publicação de O Planalto em Chamas. E completa: “O resto daquele ano [em que conheci a literatura de Rulfo] não pude ler nenhum outro autor, porque todos me pareciam menores”. Isso foi o que impulsionou e inspirou Márquez a continuar sua própria obra. Tempos depois, eles escreviam juntos o roteiro do filme El gallo de oro de 1964.

Rulfo tem um pé no realismo mágico e outro no realismo puro. A cidade fictícia de Comala, do livro Pedro Páramo (1955), recebe o forasteiro Juan Preciado que vem em busca do pai. A sucessão das páginas traz uma profusão de mistérios e almas penadas que enganam o leitor tanto quanto ao próprio protagonista. Os deserdados e excluídos de O Planalto, frutos da observação aguçada do escritor sobre seu povo, são duros como o chão em que pisam. As casas incendiadas e as balas que não param de uivar no céu dão a atmosfera do conto homônimo ao título do livro; enfurecido com a acusação de que teria matado Odilón Torrico, o protagonista de Encosta das Comadres mata o outro irmão Torrico, com requintes de crueldade, para provar sua inocência.

No genial Você não está ouvindo os cachorros latirem?, a longuíssima jornada de um pai com o filho doente nos ombros em busca do povoado Tonaya é uma elaboração refinadíssima de todo o ódio que ambos sentem um pelo outro. A mãe morta, assim como todos os amigos; não lhes restam nada a não ser um ao outro na busca por esse lugar, que nunca chega e que fará o filho voltar a andar. São léguas de distância, num completo deserto. O garoto nas costas do mais velho que o pergunta se, de cima de onde ele está, consegue ver alguma coisa ou pelo menos ouve os cachorros latirem – que o velho já escuta mesmo de longe. Mas o filho, a quem o pai atribui toda a responsabilidade pela morte da mãe, não responde nada, estafado, esgotado, clamando por água – mesmo quando parece que o povoado já está se aproximando. E naquelas migalhas de afeto, resta ao pai condoer-se ainda mais com a distância infinita e intransponível entre eles: “Você não ouvia, Ignacio? Você não me ajudou nem mesmo com esta esperança”.

A percepção do mundo de Rulfo surge imensa e inexaurível em seus textos. Numa das poucas entrevistas que deu em vida, ele esclarece que o clima de Pedro Páramo já se antecipava no conto Luvina de O Planalto em Chamas.

– Mas Pedro Páramo vem de antes. Já estava, quase que posso dizer, planejado mais ou menos uns dez anos antes. Eu não havia escrito uma só página, mas estava com ele dando voltas na cabeça. E houve uma coisa que me deu a chave para desenvolvê-lo, destrinchar esse fio ainda enrolado. Foi quando regressei, trinta anos depois, ao povoado em que vivera, e o encontrei desabitado. Passei a noite lá, e é um lugar onde venta muito, está aos pés da Sierra Madre. E durante a noite, casuarinas mugem, uivam. E o vento. Compreendi estão essa solidão de Comala, esse lugar. O nome não existe, não. Mas a derivação de “comal” – um recipiente de barro que se põe sobre as brasas para esquentar as tortillas – e o calor que sugere é que me deram a idéia do nome. Comala: lugar sobre as brasas.
E essas brasas queimam ainda o chão de Comala, de Zoplatán, de San Gabriel, enfim, daquele México cruel de Juan Rulfo.
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Cássio F B 18/12/2021

Pedro Páramo
Eu gostei da história, mas tinha mais o que fazer durante o tempo que li, então não prestei muita atenção.
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Dani 22/12/2011

Rulfo e a afasia da palavra
Juan Rulfo tem em seu discurso a força da palavra. A frase certa, econômica em adjetivos, porém expressa no momento exato. As letras compõem-se como o dedo que, insistente, irradia a dor pela ferida exposta. O mesmo estilo enxuto, aplica aos personagens e ao cenário, impondo a disciplina da economia. Ao fotografar o Planalto mexicano, constrói em seu texto um território mítico, onde a poética do espaço recria (ou é recriada, em um constante movimento dialético) a linguagem em todos os seus âmbitos, assim como a região e o próprio homem.

Em O Planalto em Chamas (in Pedro Paramo e O planalto em chamas, ed. Paz e Terra, 1992), a história é contada através da voz de um personagem, revelando o potencial literário da linguagem popular. Ao utilizar os ritmos primários, com a carga emotiva liberada, obtém o efeito máximo com o meio mínimo: “es un lenguaje hablado”, como disse em entrevista a Luis Harrs. A retórica não tem lugar, abrindo mão do rebuscamento e da redundância barroca, comuns aos textos latino-americanos da época.

A força do discurso está resultado da economia do mesmo, tem como resultado personagens e narrador revestidos de uma afasia, muitas vezes causada pelo calor e rarefação do ar. “Era como se todos nós tivéssemos perdido a fala, ou como se as nossas línguas tivessem enrolado como a dos periquitos e desse trabalho soltá-las para dizer alguma coisa”(151). Lembrando os jagunços de Os Sertões, de Euclides da Cunha, os homens parecem abismados e sem palavras diante da inclemência da vida. Tem-se a radical desvinculação do indivíduo com a realidade e o mundo natural. Sendo a palavra, enquanto linguagem, a última fronteira do homem, as personagens de Rulfo expressam na sua desistência da fala, a própria desistência do agir. Acabam, em uma sociedade arcaica, sendo seres que vagam sem rumo, muitas vezes perdendo-se em um deserto que não conhecem. “Era bonito ver aquilo. Sair de repente do emaranhado dos tepemezquites, quando os soldados já iam embora com a sua vontade de lutar, e vê-los atravessar o planalto vazio, sem inimigo na frente, como se mergulhassem na água funda e sem fundo que era aquela grande ferradura do Planalto, fechada entre montanhas”(156-157).

Este cenário calcinado, entretanto, não serve, somente, aos personagens e à ação: integram-se aos elementos em uma tensa conjunção. O Planalto evoca o labirinto: o mesmo espaço que acolhe o homem, o mantém prisioneiro, emaranhado em uma natureza que responde à uma constante relação dialética: ao mesmo tempo que lhe dá a terra onde semear, destrói a semente em meio a esterilidade calcinada. O llano impõe um martírio, que no plano da ficção, passa de material para moral e psicológico. A percepção da realidade é alterada em meio a uma perspectiva sem rumo.

Nesse ínterim, Rulfo valoriza os elementos anímicos, onde a natureza é um mecanismo de padecimento na vida das personagens. O mito desponta como justificativa última do mundo: Pedro Zamora encerra, tortura e mata seus prisioneiros como o Minotauro. Ao mesmo tempo, ele e seus homens, ao se verem afugentados pelo governo, rastejam pelo deserto como serpentes sujas, sorrateiras, fadadas a uma existência errante na mesma terra que os expulsa, mas não os deixa partir.

O passado revela o sentimento de culpa, porém essa provém de um crime que é simples recordação. O narrador ao encontrar a moça que havia violentado relembra o ato de violência, mas sua memória o insere em um contexto onde as ações se auto-justificam. Ao mesmo tempo, percebe a culpa, ou sua consciência, ao ver no olhar do filho o mesmo brilho de seu próprio olhar: “era igualzinho a mim e com algum bocado de maldade no olhar. Em algum bocado disso tinha que ter puxado ao pai”. A pluralidade do discurso faz com que fuja do padrão psicológico tradicional da memória: o recurso estilístico abre lugar ao mito e revela arquétipos que parecem apontar realidades pré-existentes. O homem não escolhe o crime, executa-o por estar inserido no fatalismo do território, agindo de forma instintiva e pragmática.

No jogo do labirinto, o tempo é cíclico: as datas se confundem, como se o mesmo sol que queima o chão fizesse com que o homem fosse levado a outro estado de consciência. Embora se saiba que a história se passa durante a revolução mexicana, tem-se apenas tempo passado e o tempo corrido, como se o conflito que gera a ação fosse o destino caótico de atravessar um lugar onde não existe saída, nem chegada.

Em entrevista, Rulfo revelou que escrevera a novela Pedro Páramo (1956) pensando nas memórias coletivas dos mortos. De certa forma, podemos aplicar tal sentença as personagens de O Planalto em chamas. Se Comala era o inferno, a travessia do Planalto se parece com o infindável purgatório: onde homens, muitos sem nomes próprios (o filho, a moça, o fazendeiro), se tornam figuras míticas ao invocarem as memórias de uma região.
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