Dani 22/12/2011
Rulfo e a afasia da palavra
Juan Rulfo tem em seu discurso a força da palavra. A frase certa, econômica em adjetivos, porém expressa no momento exato. As letras compõem-se como o dedo que, insistente, irradia a dor pela ferida exposta. O mesmo estilo enxuto, aplica aos personagens e ao cenário, impondo a disciplina da economia. Ao fotografar o Planalto mexicano, constrói em seu texto um território mítico, onde a poética do espaço recria (ou é recriada, em um constante movimento dialético) a linguagem em todos os seus âmbitos, assim como a região e o próprio homem.
Em O Planalto em Chamas (in Pedro Paramo e O planalto em chamas, ed. Paz e Terra, 1992), a história é contada através da voz de um personagem, revelando o potencial literário da linguagem popular. Ao utilizar os ritmos primários, com a carga emotiva liberada, obtém o efeito máximo com o meio mínimo: “es un lenguaje hablado”, como disse em entrevista a Luis Harrs. A retórica não tem lugar, abrindo mão do rebuscamento e da redundância barroca, comuns aos textos latino-americanos da época.
A força do discurso está resultado da economia do mesmo, tem como resultado personagens e narrador revestidos de uma afasia, muitas vezes causada pelo calor e rarefação do ar. “Era como se todos nós tivéssemos perdido a fala, ou como se as nossas línguas tivessem enrolado como a dos periquitos e desse trabalho soltá-las para dizer alguma coisa”(151). Lembrando os jagunços de Os Sertões, de Euclides da Cunha, os homens parecem abismados e sem palavras diante da inclemência da vida. Tem-se a radical desvinculação do indivíduo com a realidade e o mundo natural. Sendo a palavra, enquanto linguagem, a última fronteira do homem, as personagens de Rulfo expressam na sua desistência da fala, a própria desistência do agir. Acabam, em uma sociedade arcaica, sendo seres que vagam sem rumo, muitas vezes perdendo-se em um deserto que não conhecem. “Era bonito ver aquilo. Sair de repente do emaranhado dos tepemezquites, quando os soldados já iam embora com a sua vontade de lutar, e vê-los atravessar o planalto vazio, sem inimigo na frente, como se mergulhassem na água funda e sem fundo que era aquela grande ferradura do Planalto, fechada entre montanhas”(156-157).
Este cenário calcinado, entretanto, não serve, somente, aos personagens e à ação: integram-se aos elementos em uma tensa conjunção. O Planalto evoca o labirinto: o mesmo espaço que acolhe o homem, o mantém prisioneiro, emaranhado em uma natureza que responde à uma constante relação dialética: ao mesmo tempo que lhe dá a terra onde semear, destrói a semente em meio a esterilidade calcinada. O llano impõe um martírio, que no plano da ficção, passa de material para moral e psicológico. A percepção da realidade é alterada em meio a uma perspectiva sem rumo.
Nesse ínterim, Rulfo valoriza os elementos anímicos, onde a natureza é um mecanismo de padecimento na vida das personagens. O mito desponta como justificativa última do mundo: Pedro Zamora encerra, tortura e mata seus prisioneiros como o Minotauro. Ao mesmo tempo, ele e seus homens, ao se verem afugentados pelo governo, rastejam pelo deserto como serpentes sujas, sorrateiras, fadadas a uma existência errante na mesma terra que os expulsa, mas não os deixa partir.
O passado revela o sentimento de culpa, porém essa provém de um crime que é simples recordação. O narrador ao encontrar a moça que havia violentado relembra o ato de violência, mas sua memória o insere em um contexto onde as ações se auto-justificam. Ao mesmo tempo, percebe a culpa, ou sua consciência, ao ver no olhar do filho o mesmo brilho de seu próprio olhar: “era igualzinho a mim e com algum bocado de maldade no olhar. Em algum bocado disso tinha que ter puxado ao pai”. A pluralidade do discurso faz com que fuja do padrão psicológico tradicional da memória: o recurso estilístico abre lugar ao mito e revela arquétipos que parecem apontar realidades pré-existentes. O homem não escolhe o crime, executa-o por estar inserido no fatalismo do território, agindo de forma instintiva e pragmática.
No jogo do labirinto, o tempo é cíclico: as datas se confundem, como se o mesmo sol que queima o chão fizesse com que o homem fosse levado a outro estado de consciência. Embora se saiba que a história se passa durante a revolução mexicana, tem-se apenas tempo passado e o tempo corrido, como se o conflito que gera a ação fosse o destino caótico de atravessar um lugar onde não existe saída, nem chegada.
Em entrevista, Rulfo revelou que escrevera a novela Pedro Páramo (1956) pensando nas memórias coletivas dos mortos. De certa forma, podemos aplicar tal sentença as personagens de O Planalto em chamas. Se Comala era o inferno, a travessia do Planalto se parece com o infindável purgatório: onde homens, muitos sem nomes próprios (o filho, a moça, o fazendeiro), se tornam figuras míticas ao invocarem as memórias de uma região.