spoiler visualizarMar 12/06/2022
Palavras são tão perigosas quanto necessárias
Como a edição impressa pela Morro Branco une as histórias Estrela Imperial e Babel-17 no mesmo volume, as duas serão tratadas aqui, começando pela mais curta e menos conhecida Estrela Imperial.
Estrela Imperial é, em suma, uma exploração de estilo e conceitos revestida numa história tão simples quanto confusa. Delany deseja contar a história não só de Cometa Jo, mas Joia, os LLL, o universo, que no fim são todos peças em uma discussão à respeito de contexto e das inventadas percepções simplexa, complexa e multiplexa.
Por essas apenas, a leitura é prazerosa no início, convidando quem lê a pensar profundamente sobre cada cena, a conectar locais e pessoas, essas facilmente descritas com uma das percepções e portanto compreendidas de imediato, algo complexo de se realizar tão rapidamente.
Esses locais e pessoas, porém, são construídos de forma tão rasa e deficiente de charme que a leitura se torna lentamente uma tarefa, ao se perceber que todos os diálogos serão longos preâmbulos expositivos escritos de forma antinatural à fluidez de uma conversa.
Delany fecha tudo com um "twist" tão claramente calculado quanto premeditado, e ainda assim falho e quase revoltante pelo quão pouco parece unir-se ao seu tema central de inexistência da verdade perceptiva, além de abandonar a resolução à deriva, e encerra com abandono uma narrativa de fato cíclica, mas no mal sentido - prejudicada por não ter começo, fim, meio, ou personalidade.
Babel-17:
Quando a escritora, poetisa e prodígio da linguística Rydra Wong é chamada para decodificar uma cifra descoberta durante ataques militares à Aliança onde vive, pelo chamado Invasor, ela logo percebe que a cifra é um idioma, Babel-17.
Rydra cria sua própria missão para estar no local do próximo ataque - suposto por uma lógica militar aceitável - e estabelecer contato com o Invasor por meio de Babel-17, movida sobretudo por sua curiosidade e capacidade aparente de compreender aos outres.
A história se desenrola então em uma noitada para contratação de uma tripulação completa, e depois passa por jantares políticos, uma nave da Aliança de morais dubias, um romance que procura nublar os limites entre o eu e o outro, e mais. Ao construir essa longa jornada Delany parece muito mais preocupado com o crescimento orgânico de seu mundo e as pessoas que o habitam, além de apenas seus conceitos de FC - qualquer personagem que interaja com Rydra por menor que seja a interação é descrito minuciosamente e todes possuem detalhes físicos e emocionais distintos o suficiente para o livro se torne populado e crível, além de adicionar mais à personalidade de Rydra pela forma como ela reage e interage com outres, uma metalinguagem (acidental?) criada entre tema e técnica narrativa.
Isso, essa interação, reação e ação em relação ao próximo, esse conhecimento interno que vem pelo reconhecimento da riqueza psicológica alheia, é um dos maiores temas na história - a admissão de que só se define o eu por meio do outro, e essa simbióse é tão apaixonante quanto relevante. Para completar, Delany circunda essa temática com a segunda mais vista - o estudo da linguística.
Por meio de clara pesquisa sobre o assunto e uma costura exímia do campo de estudo dos idiomas em sua narrativa, Delany ressalta a importância da linguagem nas relações sociais e a ânsia humana por comunicação, e na sua capacidade de programar pontos de vista e verdades na mente das pessoas que podem também ser letais.
Babel-17 se torna não apenas uma aventura espacial cuja protagonista é extremamente encantadora, nem apenas uma trama política tecida velozmente, mas também o melhor que a FC tem a oferecer no quesito de refletir as maiores angústias e violências humanas e ainda assim estender a mão com esperança.
Seu maior pormenor - que parece ser um fraco de Delany se julgado apenas por esse volume - é o twist e o final que desencadeia, não apenas por trivializar o conflito que assola a Aliança e até mesmo inspirou toda a obra de Rydra até então como algo resolvivél de forma quase utópica baseada apenas na "conversa" (aqui de forma simbólica pelo uso desprogramador da Babel-18), como, e esse é seu principal pecado, reduz todas as conquistas e relações de Rydra ao afirmar que ela possuí habilidade telepata.
A confiança nesse twist é tanta que ao encerrar o livro em uma conversa sobre falácias e capacidade de Rydra de escapar de qualquer situação por meio da língua, Delany contradiz à si mesmo, afinal, a maior escapada de Rydra Wong não se deu por suas habilidades e capacidade mas sim por um poder inerente que a salvou.
Apesar de sua confusão com encerramentos e o tropeço causado no todo, Delany cria em Babel-17 um mundo vivo e instigante, que mantém o leitore atento à todos os momentos, encantando-o tanto quanto o avisa: tenha consciência do poder de suas palavras.