Paulo 19/12/2019
Resenha de Babel - 17:
Comunicação é uma palavra que envolve ser capaz de interagir com pessoas. Isso pode ser feito através da fala, de gestos, de expressões. A comunicação só é concluída quando os dois lados conseguem se entender mutuamente. Esse é um dos temas de Babel-17, um clássico da ficção científica que finalmente chega ao Brasil pelas mãos da Editora Morro Branco. Ficamos muito tempo órfãos de Samuel R. Delany, um dos grandes mestres da ficção científica e alguém que consegue falar de temas contemporâneos, mesmo o livro tendo sido escrito há algumas décadas atrás. Aviso logo que Babel-17 é uma leitura difícil, uma ficção científica dura onde as informações não estão sempre claras para o leitor. Exige pensar fora da narrativa e relacionar com outros assuntos; exige reflexão e ligar os pontos por nós mesmos. Por essa razão, não é um livro para qualquer leitor. Contudo, se você for capaz de ultrapassar essa barreira inicial, vai perceber toda a genialidade do autor. Muito antes de A Chegada, filme baseado no conto de Ted Chiang, onde um grupo de cientistas tenta decifrar uma linguagem alienígena estranha, Rydra Wong procurava entender o que era Babel-17.
A narrativa do livro é em terceira pessoa, visto do ponto de vista de Rydra. Acompanhamos sua jornada onde ela vai empregar uma tripulação bem diferente de seres. Ficamos sabendo que os terráqueos estão em guerra com os Invasores, alienígenas que parecem estar atacando a Terra e outros planetas. A Terra faria parte de uma Aliança de planetas. Bem, nesse ponto eu senti que as coisas não ficaram muito claras. Delany não explica bem o que acontece no contexto geral, deixando para o leitor juntar as peças do quebra-cabeças. Só que informações essenciais não são ditas, o que pode confundir bastante. A protagonista é uma especialista em diferentes idiomas e códigos, além de ser uma poetisa. Ela é chamada para entender uma mensagem que está sendo captada pelos sensores da Terra em uma linguagem que recebe o nome de Babel-17. Ao mesmo tempo estranhos incidentes e sabotagens acontecem em vários pontos da Aliança, precedidos de uma mensagem em Babel-17. Uma missão secundária de Rydra é investigar a relação entre esses dois pontos.
Delany tem uma forma de escrita muito precisa aqui. É até curioso examinar a diferença entre o que ele escreve aqui e Estrela Imperial onde a prosa é mais poética. Em alguns momentos, o autor assume até um tom professoral, explicando as nuances do estudo de línguas e códigos. Assumimos sempre que a comunicação precisa acontecer através da fala; isso é o senso comum. Mas, a verdade é que esta pode acontecer mesmo quando as pessoas não falam o mesmo idiomas, bastando que a mensagem enunciada seja compreendida pelo outro. Abaixo eu retomo melhor essa ideia. A narrativa segue uma linha bem simples de início, meio e fim. No começo somos apresentados ao contexto e ao problema a ser resolvido. O desenvolvimento coloca um obstáculo para Rydra até o momento em que ela conhece Jebel Tariq e o Carniceiro. E o fim é o fechamento mesmo da narrativa, deixando poucos ganchos. Nesse sentido a história é bem fechadinha, com apenas algumas coisas podendo ser exploradas (mais no relativo ao mundo onde a história se passa). Tem um momento climático quase no final que é incrível e vai agradar aos fãs de scifi.
Diferentes aspectos da comunicação são exploradas aqui: a diferença de idiomas, a capacidade para interagir com o diferente e a ausência de si. Vou começar pelo óbvio que é o tema central da história: Babel-17. Sempre acreditamos que idiomas falados precisam ter alguma relação com qualquer um dos que são falados no mundo. E temos centenas de idiomas espalhados por todo mundo, desde idiomas fonéticos até movimentos com a boca como os empregados por uma tribo que vive na Namíbia e usa estalos para se comunicar. Mas, isso não significa o mesmo para alienígenas. Eles podem empregar métodos incompreensíveis para nós, seres humanos. Infelizmente, terei que usar essa comparação, mas no conto que originou A Chegada, Chiang faz com que a protagonista, ao compreender o idioma dos alienígenas, consiga enxergar o futuro (de certa forma). Aqui, a noção é semelhante. À medida em que Rydra vai compreendendo Babel-17, ela vai se dando conta de que o universo é mais complexo do que ela imaginava. O simples entendimento dessa linguagem amplia a mente dela para a compreensão do todo.
Ao mesmo tempo temos a própria Rydra que lida com suas inseguranças e sua dificuldade de falar com outras pessoas. Vemos quando ela interage com Mocky o quanto ela luta para reforçar uma ideia de controle e comando. Mesmo ela não estando certa de suas intenções, ela vai crescendo ao longo da narrativa e lidando com uma tripulação que ela mesma escolheu. O que começa como um grupo de pessoas estranhas umas para as outras vai criando laços e passando a confiar na habilidade de Rydra. No final, a eficiência da equipe é ímpar, mesmo eles estando em outra nave que não a Rimbaud, sua espaçonave inicial.
Tenho também que destacar a ideia dos três navegadores. A necessidade de serem três e não apenas um. Nem vou comentar muito a respeito porque o motivo para isto é tão legal que eu prefiro deixar para vocês lerem na narrativa. Mas, fato é que os três precisam ter um contato muito próximo e normalmente isso acaba redundando em uma relação de teor sexual. Na narrativa, Rydra encontra dois dos três (um deles havia morrido há algum tempo atrás e Rydra precisa buscar um substituto para a função de número 1). Dos três temos um número 2 mais experiente e um número 3 inseguro. E eles querem que o número 1 seja uma mulher e que seja capaz de se relacionar com os 2. Mas, como encontrar alguém que consiga lidar com personalidades tão diferentes? Rydra acaba inovando e obrigando os dois a se esforçar para conhecer melhor Mollya. Ela vai oferecer o que eles querem, mas com uma espécie de bola curva para eles. Achei a opção sensacional e realmente os obrigou a conhecer melhor a pessoa que entrou para o grupo.
Mas, claro, um dos pontos altos de Babel-17 é o Carniceiro e a relação que ele estabelece com Rydra. Aqui, a habilidade de Delany brilha. Vou dar leves, mas muito leves spoilers aqui. O Carniceiro é um personagem que não consegue usar os pronomes eu e você. Sim, podem ler com atenção. Ele não usa mesmo. Toda vez que ele vai se referir a si mesmo, o personagem apenas bate no peito. Acaba se referindo a outras pessoas na terceira pessoa. Percebendo a situação dele, Rydra tenta ensiná-lo a diferença entre eu e você e o personagem tem uma enorme dificuldade para isso. Frequentemente ele vai se confundir a quem está se referindo. O curioso é que isso acaba criando algumas situações estranhas em que o leitor precisa desconfiar daquilo que está sendo dito. Não porque o narrador não é confiável, mas porque este não sabe dizer com precisão aquilo que está dizendo. Isso nos obriga a confiar mais na cena e no contexto do que nos diálogos. Quando eu li a primeira vez achei o trecho truncado, mas quando deu o estalo e eu voltei as páginas para reler as passagens, parece que o mar se abriu.
A forma como o Carniceiro cresce na narrativa com o passar do tempo é incrível. E eu achei que ele seria só as mãos de Tariq, aquele cara que faz o serviço sujo. Mas, as camadas dele vão se revelando pouco a pouco e ele vai ganhando uma riqueza de detalhes. O que se torna uma relação de ensinamento para Rydra vai se transformando em sua missão à medida em que detalhes sobre Babel-17 vão se cruzando com o subplot do Carniceiro. Sua relação com ele vai se tornando um crescimento e amadurecimento para Rydra.
Babel-17 é genial. Como obra de ficção científica, toca em pontos sensíveis como a dificuldade dos seres humanos em se comunicar uns com os outros, a facilidade que temos de julgar outras pessoas e o fato de ainda sermos muito jovens na medida de tempo universal. Não é uma leitura simples, mas é recompensadora no sentido de que vai nos fazer refletir sobre determinados assuntos e abrir nossas mentes para outras possibilidades. Só tenho a aplaudir a Morro Branco pela coragem em trazer Babel-17 para o Brasil, um hard scifi de extrema qualidade e por apresentar a muitos leitores a riqueza da escrita de Samuel R. Delany, um monstro do gênero. Agora, é esperar para que a editora traga outros dois clássicos do autor: Nova e Dhalgren.
Resenha de Estrela Imperial:
Deixa eu respirar antes de fazer esta resenha. Porque ela é difícil de se colocar em palavras. Estrela Imperial é um belo exemplo de como compor uma história que se autorreferencia. Escrever histórias cíclicas não é algo fácil. Desde a era dos grandes livros sagrados, muitos autores tentaram compor este tipo de narrativa. Mas, sempre ficam furos ou problemas de coerência narrativa. Isso faz com que a história tenha contradições ou situações internas fazendo o leitor entender a existência de algo não batendo. Delany consegue criar uma narrativa estruturalmente perfeita. A gente pode reclamar que a narrativa não é tão boa ou os personagens não são tão interessantes, mas a escrita é PER-FEI-TA.
Antes de mais nada, vamos tirar o elefante da sala. A narrativa é em primeira pessoa. E não é contada por Cometa Jo, mas por Joia, uma espécie de dispositivo inteligente que fica no bolso de Jo. Mas, como tudo nessa narrativa, nada é tão simples quanto parece. Isso porque Delany usa uma série de metáforas e prosopopeias ao longo da história. Coisas podem ter vida, objetos podem ser narradores. Assim como Babel-17, é uma leitura que vai exigir maturidade do leitor. Mas, no caso de Estrela Imperial o problema é mais grave porque estamos diante de uma escrita mais poética. Existe um cuidado do autor com o que ele está apresentando nas páginas. Cada parágrafo tem mais de uma interpretação possível. Os temas não estão claramente delineados. O tempo funciona até de forma diferente nessa narrativa. Lendo um artigo de Jo Walton sobre o tema (matéria em inglês, link aqui) ela chama essa dobra no espaço de tempo helicoidal. Basta eu dizer que assim que você terminar de ler, você vai querer reler para entender melhor determinados acontecimentos de um ponto de vista de eles já terem acontecido.
O narrador é totalmente não confiável. Isso porque Joia não vai te dar todas as informações naquele instante. E muita coisa vai ficar realmente incompreensível simplesmente porque o leitor não dispõe de todas as informações. E, tudo bem! Confie em Delany. Ele vai te dar as respostas assim que elas forem necessárias. Assim como Joia vai fornecer as informações para Jo quando achar que precisa. Esse tempo helicoidal provoca uma espécie de leitura de trás para frente. Por esse motivo, a primeira leitura vai parecer truncada e estranha. Esse é um livro que te obriga a relê-lo para esclarecer os pontos. E Delany faz isso de uma forma sensacional.
Cometa Jo vai passar por uma jornada de amadurecimento por toda a narrativa. Vamos ver que o personagem tem dificuldades para aceitar a si mesmo e qual é o seu papel no universo. Quando ele recebe a missão de levar uma mensagem até Estrela Imperial, ele sente que se tornou uma pessoa especial. Mas, com o passar do tempo, os acontecimentos vão colocando o personagem em perspectiva e fazendo com que ele ponha os pés no chão. Ou seja, esta não é uma jornada do herói, não temos um escolhido pelo destino. Delany quebra esse clichê ao nos colocar diante de um personagem que é comum. Sua mensagem vai ser importante a partir das lições que ele vai aprendendo. São as pessoas com quem ele interage é que vão lhe fornecendo pistas daquilo que ele deve realizar. Jo vai deixar uma marca indelével na vida dessas pessoas, não porque ele é sensacional, mas porque ele aprende algo com cada um. Se pararmos para refletir é quase como nossas vidas. Nenhum de nós é um escolhido; somos pessoas que vivem existências comuns. Mas, quando nos empenhamos em uma tarefa podemos deixar marcas na vida dos outros.
Temos que falar sobre os LLL. São alienígenas responsáveis por terraformar planetas. Representam um recurso imprescindível para os seres que habitam a galáxia. Mas, para isso, se torna necessário escravizar os LLL. É curioso pensar que em nenhum momento Delany usa de violência ou tortura para representar a situação destes seres. Apenas que eles se tornam objetos e que os donos ficam tristes ao empregá-los. O autor está demonstrando que a escravidão vai além do fato de alguém ser violado e violentado. Afinal, escravidão é a perda da capacidade de ir e vir. E é isso o que estes seres deixam de ter: liberdade. Jo vai se ver envolvido na tarefa de libertá-los. Se ele vai conseguir ou não, aí já se trata de um outro assunto.
Senti que faltou um momento climático na narrativa. Não temos um grande acontecimento marcando o final, apenas as revelações sendo feitas. De um ponto de vista prático é como se a narrativa seguisse um ritmo suave e constante por todo o livro, o que é algo ruim. Normalmente, histórias costumam ter picos estruturais, com momentos de ápice e outros de declínio. Aqui não temos isso. A estrutura segue uma série de idas e vindas em que Jo chega até os lugares, conhece pessoas, descobre algumas coisas e depois segue em frente. Os personagens também não são cativantes. Eles são um meio para nos entregar a mensagem, como é a missão de Jo.
Estrela Distante é uma narrativa mais madura de Samuel R. Delany. Ele dá uma aula de escrita para autores que buscam entender determinadas ferramentas mais avançadas. Temos um personagem desejando descobrir a si mesmo e o quanto ele pode fazer para mudar o mundo. Ele vai se ver envolvido em uma trama para libertar uma raça alienígena com a capacidade de terraformar planetas. Mas, no final da jornada, ele vai descobrir o quanto de si mesmo restou e o quanto ele evoluiu como pessoa.
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