Procyon 18/03/2022
Nelson Rodrigues, o hiperbólico dostoievskiano
?Amar é ser fiel a quem nos trai.?
O perdão nas peças de Nelson Rodrigues encarna-se pela rejeição de um desejo ? item muito utilizado ao longo da filosofia, e Nelson, como bom filósofo, também faz uso de tal. Perdoar é a renúncia do prazer da vingança: o ato de doar uma chance, uma misericórdia.
A peça, com o título genial, conta a história de Glorinha, uma adolescente órfã, que mora com o casal de tios, sempre reprimida severamente pelo tio Raul. Ela procura a ajuda da cafetina Madame Luba. O tio Raul, ao descobrir que Glorinha se prostitui, decide então revelar segredos sobre a sua origem.O próprio autor participou da primeira montagem, no papel de Raul, contracenando com Abdias do Nascimento e sob a direção de Gláucio Gill. A estrutura de romance em forma de dramaturgia encarando um resgate do realismo (quase machadiano), e distanciando-se do modernismo. A peça é dividida em três atos e usa o recurso linguístico da alternância dos planos do passado e do presente por meio de flashbacks.
Usando-se de gírias e expressões da época e do lugar, Nelson aborda a vida da classe média carioca, remetendo temas a respeito da sexualidade, do ciúme, do assassinato, do suicídio, e, em especial: do adultério. A o arquétipo da adúltera é muito presente na obra dele. Tal figura é a que carrega o peso da condição desejante do ser humano, tendo seu caráter atemporal e universal como ferrementa representacional do homem ? como gênero humano.
Existe muito da percepção da fraqueza (da dor) do ser humano e da piedade: a misericórdia de quem sente a miséria de outrem. Nelson é um modernista hiperbólico com uma verve profunda (e não profana) de dissecador da alma humana. O arquétipo da adúltera, a não virtuosa, é o exemplo tal qual da mulher de Pandora, aquela que carrega em si todos os males, todo o pecado do mundo em suas costas, mas, ao mesmo tempo, é aquela que está mais próxima de uma possível virtude.
A crítica o falso moralismo e os discursos hegemónicos da sociedade brasileira, tudo baseado em sua vivência como ?repórter policial?. O autor desnuda as relações de poder, o papel do indivíduo dentro da sociedade; tudo em situações extremadas/insólitas: uma análise da natureza humana. Não é por mera coincidência que ele se assemelha muito à polissemia das flutuações de Fiódor Dostoiévski.