Lucas 14/11/2020
Distopia pontual e elementos "novelísticos": Charles Dickens e seu variado talento narrativo
Quando um leitor, especialmente o de primeira viagem em se tratando do autor, tem nas mãos um livro do inglês Charles Dickens (1812-1870), é bom que ele saiba que as páginas nas quais ele irá debruçar-se trarão elementos comuns ao seu estilo reconhecível de escrever: traços de contos de fada, crianças órfãs, uma narrativa nostálgica e uma (s) reviravolta (s), por vezes previsível (s). Seu grande talento como narrador empregando estes e muitos outros artifícios o colocou num lugar só dele dentro da rica literatura em língua inglesa do século XIX.
Como todo grande nome da literatura do século XIX (século este que deixou à posteridade a maioria das grandes obras literárias produzidas pelo ser humano), Dickens se notabilizava por criar essa atmosfera lúdica que o definia soberbamente, mas também por abordar em seus escritos significativas críticas e ressalvas à sociedade britânica daqueles tempos, que com a Revolução Industrial (ocorrida entre o século XVIII e XIX), tornava o Reino Unido como a mais pujante nação em termos econômicos naqueles anos. Contudo, a crítica de Dickens, de uma forma geral, não era direcionada às questões econômicas, às hipocrisias que o "nascente" capitalismo gerava em termos de riqueza: o olhar crítico do autor se voltava mais fortemente a ocasiões e situações onde o que se questionava era a bondade humana, à capacidade do ser humano de perdoar, amar e compreender o outro, aos valores familiares, etc. David Copperfield (1850) e Grandes Esperanças (1860), suas duas obras mais conhecidas no Brasil, trazem consigo muitas evidências dessa sua crítica sutilmente humana.
De todas as suas obras, contudo, é Tempos Difíceis (1854) que se apresenta como a mais audaciosa delas em matéria de crítica social. Único romance de Dickens que não possui nenhuma linha se passando em Londres, narrado em terceira pessoa (em contraste às duas obras mencionadas acima) numa cidade ficcional (Coketown, que acaba espelhando os centros urbanos que foram surgindo na Inglaterra em função da Revolução Industrial e das necessidades de mão de obra dela decorrentes), o livro traz uma tônica social mais palpável, como a sinopse da ótima edição da editora Boitempo dá a entender: a narrativa critica as condições de vida dos trabalhadores e a discrepância entre pobres e ricos, entre outros pontos simbolizadores desta nuance crítica.
A história começa com o srº Thomas Gradgrind, um indivíduo em posição economicamente favorável, mas sem ser milionário, visitando os alunos de uma escola que ele ajuda a patrocinar, a escola do srº Choakumchild. Gradgrind tem três filhos, Jane, Tom e Louisa, esta última a mais velha, com cerca de 16 anos quando a história começa e que também frequenta a escola, assim como seus irmãos. Quem dá as cartas em Coketown é Josiah Bounderby, aparentemente dono de uma fábrica têxtil e banqueiro ao mesmo tempo. Personagem presunçoso e, sem rodeios, muito chato, ele é o antagonista numa narrativa em que não há protagonista (s) definido (s).
Dois personagens protagonizam as duas principais vertentes que a narrativa, em seu teor crítico, apresenta: a pequena Cecília "Sissy" Jupe, também aluna da escola do srº Choakumchild e filha de um malabarista do circo do srº Sleary; e Stephen Blackpool, honesto trabalhador da fábrica têxtil do srº Bounderby. Cecília acaba sendo usada como símbolo das críticas e do "ar nostálgico" mais recorrentes de Dickens em suas obras mais famosas: a inocência infantil em um mundo cruel, a vitimização (justa) dos pequenos numa realidade materialista, entre outros dilemas.
Já Stephen Blackpool traz consigo um tipo de crítica mais localizada que Dickens quis trazer, que é o olhar para os operários, para as questões práticas do absurdo desgaste sofrido pelos funcionários do setor têxtil (setor este que mais bem representava a Revolução Industrial) e para a necessidade de se estabelecerem regras justas na relação entre trabalhador e empregador (não, Dickens não foi um sindicalista, importante deixar isso claro, apesar de sim, ele abordar essa questão com um viés "apaixonado" em momentos bem pontuais por meio de outros personagens secundários). Blackpool não é um líder sindical, tampouco um grevista: em seu escopo surgem não apenas as degradações derivadas de toda a injusta relação de trabalho daquela época entre funcionários e patrões, mas também as contradições entre esses trabalhadores mais sindicalizados na busca por melhores condições de vida e de labor. Importante mencionar que Dickens não polemiza a questão: a essência daquilo que hoje se chama leis trabalhistas nasceu após a Revolução Industrial. Nada mais natural, portanto, que o Reino Unido também tenha sido o berço das discussões trabalhistas.
Esta crítica não é unicamente direcionada ao plano trabalhista: há um viés humano que Dickens, com seu olhar romanceado, explora ao retratar as pequenas dualidades existentes nas inter-relações dos personagens, baseadas em conflitos como método x prática, sabedoria x conhecimento, amor x razão, ciências humanas x ciências exatas, e por aí vai. Tudo começa na escola-modelo patrocinada por Gradgrind, que possui métodos rigidamente peculiares de ensino aos seus alunos. A rigidez e uma busca por padronização saltam aos olhos nas primeiras páginas, com um enfoque distópico até surpreendente para uma obra de Charles Dickens (se houvesse alguma evidência de que George Orwell (1903-1950) se inspirou nessa pontual abordagem, não seria exagero).
Se Orwell é lembrado aqui (na primeira das três partes de Tempos Difíceis, que oferece um foco maior nesse sistema rígido de ensino), outra referência, mais nítida, surge na mente do leitor: a música Another Brick in the Wall (1979), hino absoluto do rock progressivo da banda britânica Pink Floyd. A parte mais conhecida do refrão ("We don't need no education/We don't need no thought control [...] All in all it's just another brick in the wal") traduz em acordes vivos a atmosfera na qual as crianças de Coketown estão inseridas; até mesmo o clipe da música, conhecido pelo aspecto sombrio e amedrontador que causa, cria um pano de fundo preciso para esta atmosfera criada por Charles Dickens. Torna-se curioso também associar isso à realidade histórica universal: não é de hoje que um ensino padronizado, que desencoraja as subjetividades e o pensamento crítico nos alunos e que torna estes alunos os "tijolos no muro" da música citada, são desejos latentes de determinados segmentos da sociedade.
Mas Tempos Difíceis está longe de ser um livro politizado ou enviesado. Com efeito, a multifacetada mensagem social que ele traz está concentrada na primeira metade da obra. Após isso, Dickens usa o que ele tem de melhor: a habilidade narrativa singular, que prende o leitor por meio de mistérios, segredos ocultos (especialmente do srº Bounderby) e grandes reviravoltas, que, mesmo sendo previsíveis, não afastam o leitor em função da qualidade com que são descritas. O autor se apropria desta carga social para conceber o destino posterior dos seus personagens. Toma-se o exemplo de Louisa: sua educação rigidamente "orweliana" impacta significativamente na mulher que ela se torna. E os efeitos dessa formação, como se pode perceber, não são de todo positivos e Charles Dickens enumera todas as dificuldades que as crianças desprovidas de conhecimento subjetivo e emocional enfrentam na vida adulta. É esta a grande mensagem trazida por Louisa, que faz dela a personagem que mais se aproxima do protagonismo na narrativa.
Por conhecer bem os limites entre entretenimento e mensagem social, Dickens faz de Tempos Difíceis uma obra excelente, que mantém o alto nível de qualidade dos seus outros trabalhos. Com um título que poderia ser muito bem destinado a um livro contemporâneo dos dias atuais, ele oferecerá ao futuro leitor uma incisiva e pontual reflexão social com traços distópicos sem se desviar da sua típica ficção, marcada por uma ímpar habilidade narrativa, simultaneamente capaz de prender a atenção e emocionar.