Franz Kafka ou a dificuldade de ser
De Franz Kafka este volume reúne três de suas mais significativas histórias - Metamorfose, O Artista da Fome e Na Colônia Penal - precedidas de elucidativo e penetrante estudo de Hélio Pellegrino sobre a insólita ficção do genial judeu de Praga.
Essas narrativas - densas, torturantes mesmo - conciliam duas contraditórias situações - o absurdo e o realismo. Kafka inventa um universo além do real, mas, ao fazê-lo, busca e consegue o mais extremo verismo, o mais contundente, estranho e aflitivo realismo, transformando assim as suas narrativas em verdadeiras prospecções da alma humana. Como nenhum outro escritor, o criador de Gregor Samsa transfigura os dados reais, tornando-os, no entanto, mais reais do que a realidade.
Os tormentos do homem, suas frustrações, sua luta para vencer - ou ser vencido? - e superar as limitações que o complexo mundo impõe, constituem a temática da obra do autor de O Processo.
Franz Kafka é bem o ficcionista da dificuldade de ser que as regras de conduta propõem em nome de um equilíbrio pessoal ou social que nem sempre pode aceitar passivamente - falso equilíbrio esse responsável pelos traumas que produzem no psiquismo individual e coletivo. Seus personagens são rebelados diante das fórmulas preexistentes ou previstas de viver. São conflituosas criaturas em busca de uma autenticidade humana negada pelos padrões convencionais de tudo quanto forma o ordenado sistema que herdamos e no qual estamos à força inseridos.
Assim, a sua literatura - durante tanto tempo catalogada como conformista, acomodada, dirigida por atroz e estéril pessimismo - é, antes de tudo, de luta e protesto, de contestação aos valores erigidos em inalteráveis, insubstituíveis e imutáveis. Kafka vem demonstrar, por intermédio da fantasia ultra-realista, que, acatar os ordenamentos e certezas tais como nos são propostos, só podem levar o homem a um mundo irreal, absurdo, ilógico, sádico e masoquista. A um mundo que é, tal como está, kafkaniano, e que, por isso mesmo, produziu Franz Kafka. Kafka é kafkaniano malgré lui.
Produto de sua vivência pessoal, dos desentendimentos que manteve com o ambiente social e familiar, notadamente com o pai, figura de dominadora personalidade, a literatura de Kafka parte de uma base verídica - a sua percepção dos acontecimentos que o envolvem - que sofre, desde logo, as transmutações sugeridas por seu espírito criativo e poético. Capaz de elevar à categoria de símbolos as situações e os seres que caracterizam ou povoam suas dolorosas e terríveis histórias, Kafka renovou as letras do nosso tempo, deu-lhes dimensões inesperadas e inédito alcance psicológico, abrindo assim desconhecidos desvãos para o melhor entendimento da vida e do homem.
Em nosso mundo conturbado, repleto de circunstâncias inumanas e desumanas, irracionais e delirantes, Kafka tornou-se, com sua literatura impiedosa, - impiedosa com ele mesmo e com o sistema que o feriu - a melhor expressão do horror que é viver sob a opressão vistosa ou oculta. A opressão que pode nos rodear e fazer de todos nós habitantes involuntários de uma alucinada e cruel colônia penal, desvalidas criaturas famintas de compreensão ou pobres Gregor Samsa, bichos-homens que só se recomporão humanamente em atmosfera clara e límpida de liberdade, de amor e de justiça.